quinta-feira, 29 de abril de 2010

Penso que já não há muitas razões ou, ao menos, muitas condições, decorridas tantas semanas, para uma retomada daquele projeto pretensamente genealógico. Decerto, esta retomada enfaria tanto a vocês, possíveis leitores, como a mim.

Além do mais, não faltaria muito a este projeto. Não muito, obviamente, se contarmos apenas com as minhas limitações de pensamento. Não muita coisa, mas coisa importante. Esta coisa, como a imaginação de vocês já deve ter insinuado, é a invenção e a invasão indiscreta do discurso psi.

Havia pensado em discutir alguns textos de psicologia ou psicanálise ou qualquer outro psi. Mas eles são tão óbveis! E o que eu teria a dizer deles, também: obvilíssimo.

Ou talvez não tão óbveis assim... Haha. Acudiu-me, neste exato momento, responder, ou desenvolver, ou tentar sofisticar uma pergunta que eu fizera em um texto anterior. A pergunta era sobre como punir alguém que quer se matar, já que a mais grave das penas estipuladas pelo Direito é, precisamente, a morte. O que talvez nos forçasse a ver, nos suicidas, antes de indivíduos carentes ou frágeis, os mais invejáveis burladores de um sistema de governamento muito refinado. Se a hipótese foucaultiana estiver correta e o sistema penal tiver como fim, não distinguir o que é legal do que é ilegal, mas contornar as ilegalidades de uma população, quem sabe a gente comece a surpreender, no suicídio, do ponto de vista político, um gesto espraiado de rebeldia, de inconformismo, de mais-vida.

Bem, as penas para os suicidas foram (e continuam sendo, sem dúvida) de ordem transcendental, sagrada. Mas o discurso aparentemente laico dos psi tornou o desejo de morrer uma doença, uma patologia; qualquer coisa indesejável, que merece cura. Patologia mundana, descrita com rigores mais ou menos científicos, com cura mundana, prescrita com rigores mais ou menos científicos.

Sagrado ou profano, o pastoreio é o mesmo.

Triste o mundo em que o desejo de morrer seja tomado como melancolia, depressão, amargura, rancor, fraqueza etc. Não é nada disso. Nem não é.

Mais uma vez, as palavras me tomam e alteram os rumos desta minha escrita. Para o próximo texto, pretendo fazer o que não fiz hoje: pensar o suicídio com Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze, Michel Foucault e companhia, retomando, como eles o fizeram, a ética grega.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Os limites da interpretação midiática

Antes de começar a crocitada de hoje, gostaria de me desculpar pelo atraso do tamanho de um elefante. Infelizmente, os corvos, assim como os focas e os seres humanos, precisam trabalhar pra burro, muitas vezes mais em benefício dos peixes grandes do que de si próprios. Mas chega de pedir desculpas. Vamos direto a um assunto que me interessa particularmente: como é possível ler e interpretar sentidos em um texto?

Na maioria das vezes, o ato de interpretar está relacionado quase automaticamente a textos literários de modo que toda a vasta produção neste campo parece murchar quando se trata de outras linguagens estéticas e encolhe ainda mais quando falamos de textos midiáticos. Não pretendo retomar a questão da inferioridade das novas mídias perante a uma suposta virtude hermética da literatura - uma discussão já vencida, na minha opinião. 

No entanto, todas as técnicas de análise tão bem sedimentadas no campo literário parecem se desfacelar diante de um caso midiático e enigmático como o da vinheta comemorativa aos 45 anos da Rede Globo. Aparentemente inofensiva e seguindo mais o menos o conceito visual da equipe de Hans Donner, a vinheta foi retirada do ar após a acusação do coordenador da campanha da presidenciável Dilma Rousseff segundo a qual o breve vídeo conteria em si uma mensagem embutida a favor do candidato José Serra. 


A base argumentativa da acusação se apóia em duas referências intertextuais bem sutis e, digamos, um tanto frágeis. A primeira é o número "45" exibido na vinheta, simultaneamente o tempo de vida do conglomerado jornalístico e o número do partido rival de Dilma Rousseff na corria presidencial. A segunda se encontra em um trecho final do texto pronunciado por diversas celebridades da emissora e consiste nas seguintes palavras:  "Todos queremos mais. Educação, saúde e, claro, amor e paz. Brasil? Muito mais". Supostamente, haveria aí uma referência velada ao slogan da campanha de Serra que diz "O Brasil pode mais".

A pergunta não poderia ser menos clara: pode-se falar com alguma segurança que houve aí a intenção de produzir referências ambíguas embutidas que pudessem influenciar a decisão de voto do eleitor? A comemoração dos 45 anos da Rede Globo é uma aleatoriedade sem relevância ou a emissora teria aproveitado a oportuna coincidência para levar a cabo mais uma de suas manobras insondáveis? 

Colocadas desta maneira, as perguntas favorecem sem dúvidas a ideia de que a equipe de campanha da candidata petista recorreu a uma superinterpretação quase paranóica como forma de tentar enfraquecer o adversário. No entanto, existe ainda uma mínima ressalva na caricaturização da intencio auctoris  malevolente e manipuladora dos produtores da vinheta: as ambiguidades apontadas pelos acusadores de fato se encontram no texto, independente de ter sido colocada ali propositalmente com o intuito de criar uma inclinação inconsciente ao candidato do PSDB. 

Por um lado, parece uma ingenuidade depositar tanta confiança em uma tal explicação conspiratória apoiada somente em coincidências de superfície (caso a Rede Globo tivesse sido fundada um ano depois, talvez uma coincidência matemática adiaria a vinheta em uns 150 anos ou mais). Além disso, o argumento remete vagamente a uma ideia de subliminaridade construída em conceitos de consciência/inconsciência tão firmes quanto tatuagens de chiclete. 

Por outro lado, quem é familiarizado com o ambiente midiático de publicidade, propaganda, televisão e cinema sabe bem que as peças e filmes produzidos são polvilhados, aqui e ali, de sutilezas desimportantes que nada mais são do que "recados cifrados". Qualquer envolvido com criação audio-visual sabe que nenhum elemento é casual e, se ele foi aprovado na produão final da peça, é porque certamente existe um bom motivo - seja ele qual for! - para ele estar ali.

Assim como no caso de poemas e romances, é praticamente impossível dar a palavra final sobre o que o "autor" quis dizer. Também seria leviano deliberar um significado definitivo e único decifrado por debaixo das entranhas do texto. Pretender ter uma visão acabada e completa sobre o significado é uma ousadia pouco recompensadora que, na maioria dos casos, apenas leva à segurança ilusório de um sentido estabilizado. A única coisa que nos resta é nos colocarmos diante desta esfínge televisiva e não perguntar "o que isso significa?", mas sim "como é que isso pode significar?".


quinta-feira, 15 de abril de 2010

Em lugar do texto insuportável que eu estava escrevendo, com os devidos pedidos de perdão pela minha ausência nestas duas últimas semanas, com algumas explicações sobre o possível movimento do blog etc., deixo duas palavras:

suicídio: matar-ci.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Mídia devassa

 agradecimento especial: R.C.L.

No texto sobre os aumentativos da campanha do cervejão da Nova Schin, comentei o fato de jornais e cervejas serem vendidos com os apelos publicitários idênticos. Infelizmente, a proximidade entre produtos alcólicos fermentados e produtos midiáticos parece ser maior do que o comentário despretensioso permitia suspeitar. A cerveja que deixou tudo muito mais claro dessa vez é a Devassa, cuja campanha de lançamento deflagrou mais uma polêmica publicitária estrondosa e absolutamente desproporcional. Antes de abordar o ponto central da discussão, gostaria de dar alguma palavrinha sobre a campanha em si mesma. Como todo lançamento de um novo produto ou serviço, a campanha precisa ter um efeito impactante em um maior número de pessoas possível (isto é, dentro do púlibco-alvo delimitado). Quando se trata de um segmento de mercado estável e já dominado por grandes marcas, o desafio torna-se ainda mais árduo: além do esforço em se fazer conhecida, a marca neófita precisa desfazer os laços de credibilidade já estabelecidos entre clientes e marcas.



Ao meu ver, essa parece ter sido a pedra angular de toda a execução da campanha, a começar pela escolha de Paris Hilton como protagonista. A socialite americana não lembra quase nada uma mulher brasileira, nem mesmo uma cerveja e muito menos uma cerveja brasileira. Se, como por um passe de mágica, uma cerveja pudesse ser personificada em uma mulher, certamente ela não se metamorfosearia em Paris Hilton. Eu até arriscaria dizer que este é somente meu ponto-de-vista particular e só diz respeito às minhas preferências de perfis femininos se minha opinião não tivesse sido ratificada por outras pessoas, o que me faz desconfiar seriamente que muitas mulheres brasileiras talvez também não se identifiquem com a imagem da loirinha de pele clara. Embora a escolha capciosa desempenhe um papel importante na estratégia da campanha, ela não é o elemento único e nem central da polêmica em torno do lançamento da Devassa.


O comercial suspenso por medida do CONAR (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação publicitária) pode se resumir em uma relação espelhada de voyeurismo-exibicionismo envolvendo Paris Hilton, um homem que a fotografa e, logo depois, diversos transeuntes. Aparentemente inofensivo, o filme foi suspenso por trazer como centro da mensagem um apelo à sensualidade, o que causou reações revoltosas perante a "hipocrisia" e o "falso moralismo brasileiro" que podem ser exemplarmente ilustradas pelo artigo de Sérgio Augusto publicado no Observatório da Imprensa e intitulado Tempestade em lata de cerveja. Embora o tom das críticas tenha sido geralmente bem mais chulo, considero o texto de Sérgio Augusto um bom sumário daquilo que já se disse sobre a campanha em questão.

Uma boa parte das críticas retomou o fato de que, em outros filmes publicitários, as formas de apelo à sensualidade são bem mais vulgares do que aquelas empregadas no filme da Devassa. Embora pareça razoável à primeira vista, a argumentação deixa transparecer uma ingenuidade incômoda. Em primeiro lugar, cai-se no erro quase infantil de comparar a publicidade nacional com a internacional. Qualquer um que já tenha visto um punhado de comerciais estrangeriro percebe que as regras tácitas de criação publicitária são completamente diferentes: os limites do humor, os exageros do erotismo, as extrapolações do non-sense e os padrões visuais plásticos deixam bem claro que, se os gêneros literários variam de uma cultura para outra, o mesmo também vale para a publicidade.

Em segundo lugar, o julgamento do grau de indecência de um ou outro filme se limita àquilo que é efetivamente mostrado na tela, talvez ignorando o fato de que existem numerosas maneiras de criar efeitos de sensualidade (assim como suspense, medo ou divertimento) por meio de alusões e referências indiretas. Não faltam filmes sobre a face da Terra em que cenas de forte apelo erótico são criadas sem exibir nenhuma parte do corpo que já não seja visível sob a proteção moral das roupas.

Em terceiro lugar, esse ponto-de-vista parece ignorar o fato de que os responsáveis pela criação e veiculação de uma campanha conhecem claramente as determinações impostas pelo CONAR. Mesmo cientes da legislação brasileira que proíbe que o apelo sensual assuma lugar central em comerciais de alcólicos, agência publicitária e cliente decidiram voluntariamente lançar uma campanha mais ousada, correr o risco de infringir a proibição e, com isso, criar o burburinho que atrairia as atenções para si. Seria no mínimo ingênuo acreditar que a empresa está sendo alvo de um "boicote hipermoralista e recalcado" que só dá atenção às imoralidades inofensivas da publicidade e faz vistas grossas a outros escândalos veiculados em filmes, músicas e - curiosamente, vejam só! - pelo jornalismo.

No caso do artigo de Sério Augusto que mencionei aqui, o autor incorre no erro ainda mais grosseiro de recorrer ao argumento de que Paris Hilton já explora mesmo sua sensualidade em público e que, por isso, não haveria nenhum problema de fazê-lo em um comercial. Para completar a linha de raciocínio sólida como um castelo de paçoca, o articulista cita uma antropóloga americana e esboça uma genealogia das significações da loura. As tentativas de defender o direito da marca de veicular Paris Hilton se esfregando em uma latinha de cerveja recorrem a toda sorte de motivos que, no entanto, parecem ignorar a estratégia meticulosa do anunciante de veicular o seu próprio comercial censurado como modo de ampliar ainda mais o seu efeito perante o público.


Aqueles que tem uma memória publicitária um pouco mais acurada podem se lembrar rapidamente da campanha de lançamento da Tesourinha do Mickey em que crianças repetiam irritantemente o bordão "eu tenho, você não tem!". Na época, o comercial foi também suspenso pelo mesmo órgão de regulamentação por desrespeitar o sentimento de auto-estima da criança que, por não poder possuir o produto anunciado, era zombada e excluída pelos seus colegas. A reação da empresa diante da proibição se valeu da mesma estratégia utilizada pela Devassa nos dias de hoje: o mesmo comercial foi levado ao ar com o polêmico bordão substituído por barulhinhos nasais e grunhidos que replicavam o ritmo da fala do bordão original. Resultado: as vendas da Tesourinha do Mickey continuaram a crescer indiferentemente à proibição.


A bem da verdade, não me interessa muito se o roteiro do comercial da Devassa ofende os valores morais do público ou não. Considerando sempre que as homogeneidades da massa só existem nos papéis dos planos de mídia e estatísticas de opinião, é bem provável que uma boa parcela da população de fato tenha se sentido ofendida com o filme publicitário, enquanto outra deve ter adorado ver a modelo em cenas exibicionistas e, por fim, uma outra parcela deve ter permanecido indiferente ao assunto. Estes são apenas pontos-de-vistas diferentes e só dizem respeito aos valores morais de cada um. O que realmente me surpreendeu no episódio foi o fato de uma maioria considerável de espectadores condenarem a decisão do CONAR e defenderem indignadamente o "direito de liberdade de expressão" da empresa anunciante, como se ela tivesse prestado um serviço indispensável ao público.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Esporte nacional e jornal espetacular

Não, eu não me confundi na hora de escrever o título de hoje. A inversão poderia ser apenas um anagrama engraçadinho de dois programas de uma grande emissora de televisão aberta e seria bem melhor se assim fosse. Infelizmente, o trocadilho me parece na verdade uma fórmula telegraficamente condensada do que vemos na postura do jornalismo na cobertura de julgamentos polêmicos como o do casal Nardoni. Essa iluminação me veio quando assistia um jogo de futebol televisionado pela tal emissora e notei que os narradores insistem em preencher toda lacuna de silêncio com comentários dispensáveis e, muitas vezes, com pouco nexo. 

A cada toque na bola, os narradores abrem a boca para descrever qual pé tocou na bola, qual jogador fez o toque, qual recebeu, em que região do campo que foi, se tinha algum jogador adversário marcando o lance e se o passe foi bom. Daí, eles passam a relatar o número de passes feitos por cada time até o momento, quantos passes o time dá em média por jogo e sempre partem para estatísticas e tabus retirados de alguma fonte eletrônica. Quando o lance é de falta, o falatório pode se multiplicar astronomicamente: os comentaristas desfiam dezenas de suposições, julgam a interpretação do juiz, analisam o seu ângulo de acordo com sua posição no campo, interpretam a intenção do jogador faltoso ou então a tentativa de simulação do jogador rolando no chão. No caso da cobertura do julgamento dos Nardoni, exatamente a mesma tagarelação vai reproduzindo o desenrolar dos fatos.

Como urubus sedentos pela carne de um cadáver moribundo, os jornalistas se empoleiram à espera de uma novidade qualquer, por menor que seja, para se alimentar dela e transformá-la, assim como o faz o narrador esportivo, em um lance de jogo a mais, passível de dezenas de comentários, na maioria das vezes supérfluos. E, quando isso não basta para encher as pautas, é só recorrer ao tira-teima para observar tudo de uma outra câmera e multiplicar tudo aquilo que já foi dito, mas de outro ângulo. 

A bem da verdade, não sou contra este hábito dos narradores esportivos. Muito pelo contrário, compreendo que ele tenha a função de criar efeitos de realidade e de dinamismo na transmissão de qualquer esporte (creio que só o xadrez e o poker dispensem esse tipo de recurso). Quando o narrador descreve os movimentos dos jogadores e da bola, ele reproduz as cenas sonoramente na imaginação do expectador e o envolve nos movimentos do jogo, instala-os dentro do próprio "momento imediato" do jogo  e a todo momento dá a impressão de que algo pode acontecer. Os jornalistas também não pretendem outro efeito quando publicam compulsivamente matérias sobre um mesmo evento (neste caso, o polêmico julgamento), ainda que as "novidades" veiculadas não alterem substancialmente o desenvolver dos fatos tomado em sua totalidade. 

No entanto, existe uma diferença fundamental que inocenta os narradores esportivos e condena os jornalistas. Ao contrário do esporte, o jornalismo não se destina ao entretenimento - ou pelo menos não deveria. Narradores e comentaristas podem dizer superfluidades o quanto quiserem, até que isso lhes manche a reputação entre seus colegas de trabalho. O jornalista, por sua vez, não tem o direito de usar o alcance de sua voz para falar qualquer coisa. O narrador não precisa necessariamente acrescentar algo substancial ao lance do jogo que está narrando - seu objetivo principal é envolver o torcedor e ele terá sido bem-sucedido se conseguir despertar neste toda a sorte de emoções que uma disputa esportiva pode causar - raiva, medo, alegria e ansiedade. Do outro lado, um jornalista que busca estes mesmos efeitos ou não deve ser levado a sério ou está contrariando abertamente os juramentos tão difundidos de compromisso com a verdade e com a confiabilidade da informação. Gostaria de lembrar ainda que, na maioria dos casos, os textos de coberturas como essas (que também incluem acidentes áereos, sequestros ou ataques armados de qualquer espécie) não trazem nada substancial que o leitor possa guardar para si quando a poeira dos acontecimentos já estiver baixado. 

Estas tentativas de mergulhar o público em uma realidade recriada não é nenhuma novidade, ao contrário ela se manifesta tanto na evolução gráfica dos video-games quanto nas descrições minuciosas na literatura. E também, não nos esqueçamos, nas locuções de futebol. O que parece realmente intrigante é que o jornalismo utilize impunemente os mesmos recursos da transmissão esportiva, dos videogames e da literatura.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Outro momento importante, no Cristianismo, me parece, para os discursos sobre o suicídio, foi o "O evangelho segundo o Espiritismo", de Allan Kardec. Muitos séculos depois de Dante Alighieri, em 1863, o famoso evangelho, basilar para o entendimento do espiritismo especialmente kadecista, é publicado.
Merece muito mais atenção do que daremos hoje. Por isso é que, certamente, voltaremos a ele em outras semanas.
Por ora, vamos ficar com uma prece apenas:
"72 – Prece – Sabemos qual a sorte que espera os que violam a vossa lei, Senhor, para abreviar voluntariamente os seus dias! Mas sabemos também que a vossa misericórdia é infinita. Estendei-a sobre o Espírito de Fulano, Senhor! E possam as nossas preces e a vossa comiseração abrandar as amarguras dos sofrimentos que suporta, por não ter tido a coragem de esperar o fim das suas provas! Bons Espíritos, cuja missão é assistir os infelizes, tomai-o sob a vossa proteção; inspirai-lhe o remorso pela falta cometida, e que a vossa assistência lhe dê a força de enfrentar com mais resignação às novas provas que terá de sofrer, para repará-la. Afastai dele os maus Espíritos, que poderiam levá-lo novamente ao mal, prolongando os seus sofrimentos, ao fazê-lo perder o fruto das novas experiências. E a ti, cuja desgraça provoca as nossas preces, que possa a nossa comiseração adoçar a tua amargura, fazendo nascer em teu coração a esperança de um futuro melhor!. Esse futuro está nas vossas próprias mãos: confia na bondade de Deus, que espera sempre por todos os que se arrependem, e só é severo para os de coração empedernido." (tradução de José Herculano Pires)
Fragmentariamente, pois que não há tempo para a costura hoje:
Aos suicidas, pede-se a misericórdia divina. Como se os suicidas quisessem a misericórdia de alguém. Como, aliás, se a misericórdia não fosse lamentável. E é.
Suicidas são considerados infelizes. E são?
Suicidas são considerados covardes por não terem esperado até o fim dos dias. A isto, teremos demais de voltar. Aqui, vejo uma inversão completa à concepção grega de coragem. Mas, enfim, será que é mesmo coragem esperar até o fim dos dias? Será que é mesmo falta de coragem enfrentar a floresta dantesca? Sei não...
Aos suicidas, remorso. Credo! Dispenso. Está em causa, aqui, a má consciência. Só faz mal.
Por fim, esperança no futuro. O Cristianismo e o futuro redentor. O Cristianismo não sozinho nem puro. Pelo contrário, distorcido, retorcido, reinventado, apropriado, despropriado. O Cristianismo e o espírito do que chamamos sem cuidado capitalismo. O Cristianismo entranhado, incutido nos não-cristãos, inclusive. O Cristianismo e o pavor, e os apavorados. O Cristianismo e a má consciência. O Cristianismo e o Paulo Freire. O Cristianismo e a moral. O Cristianismo e o eu. O Cristianismo e a vida indigna, indigníssima.
Antes do tchau: a imensa maioria das condutas pôde ser conduzida pelas penalidades terrenas, pelos castigos terrenos, pelo julgamento moral terreno. Mas como julgar, penalizar, castigar terrenamente os suicidas? Esses desviados, livres e escapos...

quarta-feira, 17 de março de 2010

Que Shakespeare me perdoe a apropriação paupérrima, mas há algo de podre, no reino da Dinamarca.
Bem, seja como for, e agora é ninguém menos que Dante Alighieri que haverá de me perdoar, visitemos nossa floresta, finalmente.
"Visitemos" talvez seja pretensão em demasia. Quem sabe, dar uma voltinha. Não bastassem as dificuldades muitas de atravessarmos tal floresta, ingrimíssima, o tempo não está a ajudar.
No sétimo círculo do Inferno, estão os violentos. O sétimo círculo é repartido em três vales. O primeiro é reservado aos violentos contra a natureza, as pessoas e seus bens. O segundo, aos violentos contra si mesmos, mais precisamente, no italiano arcaico do século XIV, aquele que "non è giusto". Portanto, ainda não se trata de suicídio nem de suicidas. Aliás, até agora, não existe nosso objeto de preocupação. Existe a ação de tirar, de um modo ou de outro, a própria vida, mas não o suicídio. Esta invenção, já vimos mais de uma vez, emergiu mais tarde. Se usei (e usei) a palavra "suicídio" para me referir aos acontecimentos anteriores, foi por comodidade apenas.
Neste vale, enfim, há uma floresta. Ficou conhecida como a "floresta dos suicidas". A floresta reservada aos violentos contra si mesmo, aos injustos.
Floresta "non fronda verde", mas "di color fosco". Traduzem por floresta de escuridão, em vez de folhagens verdes. As árvores desta floresta sombria, infernal, são os próprios injustos. Nelas, repousam ninhos de "le brutte Arpie". As Arpie, da mitologia grega, são aves de rapina ("Ali hanno late, e colli e visi umani, 13. 14 piè con artigli, e pennuto 'l gran ventre; 13. 15 fanno lamenti in su li alberi strani.") com asas largas, garras nos pés, rosto de mulher e seios (como toda ave de rapina?), que devoram as folhas das árvores.
Nesta floresta, ouvia-se "grita alfitiva" por toda parte, sem que se pudesse saber quem gritasse ("Io sentia d'ogne parte trarre guai, 13. 23 e non vedea persona che 'l facesse; 13. 24 per ch'io tutto smarrito m'arrestai."), até o Poeta saber que as árvores eram os próprios condenados.
Adiante, explica-se: "Quando si parte l'anima feroce 13. 95 dal corpo ond'ella stessa s'è disvelta, 13. 96 Minòs la manda a la settima foce." Em português, traduziu-se: "Quando os laços de uma alma ímpia/ Destrói por si, do seu furor no enleio/ Ao círc'lo sete Minos logo a envia".
Pedro des Vignes, secretário de Frederico II, agora transformado em lenho, enforcou-se por ter sido acusado injustamente de trair seu rei, conta as razões de lá estar ao poeta. E agora? Uma morte mais próxima das mortes do Primeiro Testamento ou da de Judas? Afinal, é uma morte de alguém digno, mas acusado injustamente, talvez, tal como Judas. Mas a mim me parece que esta morte de Pedro des Vignes está mais para as do Primeiro Testamento, pois, mais uma vez digo, não me interessa pensar a Bíblia hermeneuticamente, tentando recuperar o que, de fato, Judas fez, mas apenas tentar acompanhar os movimentos que a história oficial (e, nela, Judas é ou foi, por muito tempo, vilão), por mais ou menos enganosa que esta história possa ser, disparou. No limite, não me interessa, aqui, a Bíblia, mas somente o que se tornou possível falar e fazer a respeito do que veio a se chamar suicídio depois dela e que, antes dela, não era possível.
Bem, Dante Alighieri, neste poema absolutamente extraordinário e lindo, sem sombra de dúvida, e de grande repercussão, durante os séculos, parece-me dar um passo adiante à narrativa de Judas. Aqui, os violentos contra si mesmos, os "non giusto" (injusto pode ser, segundo o que estudei e o que penso, na Bíblia, aquele que, de algum modo, não age conforme à vontade de Deus) ganham um lugar: o inferno. Mais especificamente, o sétimo ciclo e o segundo vale. Nada muito agradável nem muito encorajador. Além disto, numa floresta obscura, sombria, espinhosa, com ramos nodosos e puas envenenadas. Enfim, não é o lugar no qual eu gostaria de atravessar a eternidade (aliás, detalhe não sem efeitos relevantíssimos, aqui, há a idéia de eternidade). E é um lugar reservado mesmo aos secretários fiéis e leais, se, porventura, traírem a vontade divina.
E toca terror nos que querem se matar.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Domingão, Jogão e Cartão

Bom dia, Krá krá

Antes que eu comece a crocitada de hoje, peço desculpas pelo atraso animal deste corvo que vai se esforçar o quanto pode para manter sua assiduidade por aqui. E, ainda antes da crocitada de hoje propriamente dita, gostaria de narrar uma pequena anedota pessoal. Exatamente hoje, 17 de Março, participei de um simpósio acadêmico e minha apresentação tratava de publicidade infantil e foi agendada em uma mesa com uma outra apresentação sobre publicidade e mundo corporativo. Como eu não estava metamorfoseado em minha forma de corvo, a abordagem ao tema foi consideravelmente sóbria, embora eu não tenha ficado satisfeito com meu próprio desempenho na apresentação. Como quer que seja, por contingências do trabalho que expus, tive de falar um pouco sobre as diversas linhas de abordagens à publicidade infantil e de repente me flagrei falando de temas sobre os quais nunca tinha refletido - ou não tinha consciência que eu já refleti alguma vez sobre eles. Depois da apresentação seguinte à minha - que colocou à mesa, a propósito, um rocambole teórico suspeito -  fiquei com a impressão de que muita coisa pode ser falada sobre a publicidade mas muito pouco pode ser realmente sensato. Nos limites de um fazer científico, é necessário perguntar "por que?" insistente e recursivamente e, neste ponto, uma parte infelizmente grande abandona a empreitada no meio com um resignado "isto é assim mesmo" ou então apela para pressupostos pouco razoáveis. De qualquer modo, quando se trata de olhar a publicidade como um objeto de estudo sério, é muito fácil cair em um falatório redundante e inconsistente que, não em raras vezes, poderia dispensar qualquer aporte teórico. E, quando não é possível recorrer a um destes, só nos resta uma solução: crocitar.

***

Há alguns dias atrás, comentei sobre a campanha do Cervejão lançada pela Nova Schin, que se vale de determinados truques linguísticos para tentar se infiltrar no cotidiano do consumidor. Resumidamente, os pseudo-aumentativos e uma valorização positiva algo caricaturesca de tudo que termina com "ão" são os lugares-comuns que sustentam o conceito da campanha. Já crocitei longamente sobre os pontos fracos desta estratégia mas decidi bicar um pouquinho mais a Nova Schin (e, porque não, agência de publicidade que possui sua conta) pois ela decidiu também nos presentear com mais um escorregããão sem noçããão na televisãão.


O novo filme da campanha vem para dar uma nova postura para a marca na medida em que inclui o público feminino como consumidor da cerveja. Persistindo no bordããão do aumentativo, a tentativa pode até parecer astuta, já que a mulher sempre ficou relegada ao papel de objeto de desejo nos anúncios de cerveja (em certos casos, um adjetivo ambíguo não permite saber se se trata da cerveja ou de uma mulher). Infelizmente, o calcanhar de Aquiles do novo roteiro é muito grande e qualquer rasteira de um espectador um pouco atento pode derrubar esse gigante de muitas cifras e pouco tato social. De um ponto de vista bem ingênuo, a abordagem pode soar bem aos ouvidos das mentes moderninha e ir ao encontro do ideário de independência e igualdade da mulher. Se homem bebe cerveja e não é recriminado por isso, por que é que a mulher deveria sê-lo? Pois, se os homens podem beber cerveja com os amigos no domingããão, que as mulheres também tenham essa direito. Essa linha de argumentação pode acabar virando arma para muitas discussões de relacionamento de casais por aí, apesar de esconder muito mal o estereótipo da mulher utilizado para funamentá-lo. 

No roteiro do novo vídeo, os termos aumentativos das falas masculinas são mais ou menos os mesmos dos vídeos anteriores e não poderiam ser menos representativos do estereótipo masculino: domingããão, cervejããão, jogããão (sem contar, é claro, o explícito machãão). Do lado feminino, marcado pelos cortes do áudio e do cenário, os aumentativos colocados na fala das mulheres marcam exatamente qual é o estereótipo de mulher que se senta à mesa para pedir uma Nova Schin: liquidaçããão, promoçããão, cartããão.

Cartãão aumentativo?

Agora, rascunhando a historinha do Marcããão e a sua esposa surrupiadora de cartããão,  o comercial não retrata nada além de um tiozããão que sai pra beber com os amigos e ver futebol e deixa sua esposa consumista sair para beber com suas próprias amigas, também todas elas deslumbradas com as maravilhas das compras. Não sei se estou sendo um corvo muito simplista ou muito ingênuo, mas não me parece que esse seja realmente o perfil comportamental de uma mulher que quer ter o mesmo valor dos homens. Considerando aquilo que o comercial nos dá a ver, as mulheres poderiam muito bem se equiparar em direitos aos homens se fizerem também o mesmo que eles: sair no domingããão pra beber o cervejããão. A mulher que achar divertido o comercial e rir junto com as atrizes certamente estará se alinhando a este ponto-de-vista e, levada pelos apelos do humor, talvez não se dê conta (talvez porque conscientemente concorde com isso) aquilo que lhe é proposto como identidade.

Ao final dos 30 segundos, a voz do locutor delata quem é, na verdade, o destinatário do comercial ao dizer: "domingão é dia de jogão, cuidado com o cartão". Ora, se a mulher realmente fosse abordada por este comercial, a advertência com o cartão não faria muito sentido já que, seguindo o próprio roteiro do filme publicitário, o cartão é motivo de satisfaçããão para a mulher e preocupaçããão para o homem. Se o comercial avisa o espectador para ter cuidado, então ele só incluir o público masculino. É provável que alguém ache minha linha de raciocínio algo óbvia ou mesmo exageradamente analítica. No entanto, esse tipo de engodo propagandístico (pois que ratifica certas concepções de masculinidade e feminilidade) é grasnado diariamente em nossos televisores e atinge milhões de espectadores. Por conta de comerciais com este, não faz sentido se perguntar em tom algo injuriado, como o fazem uns e outros, por que é que mesmo já no século XXI as mulheres ainda não ocupem o mesmo estatuto dos homens na sociedade. Para determinados segmentos sociais, é extremamente conveniente promover uma pseudo-emancipação feminina que esconde, na verdade, apenas uma perpretação dos mesmos valores em voga com o único objetivo de garantir lucros.

quinta-feira, 11 de março de 2010




Todos sabemos: quem cala, dissente. Grave.

Esta imagem abre assunto que deveríamos falar logo.
O Cristianismo, propriamente. Os acontecimentos depois da morte de Cristo.
O que aconteceu neste momento?
O que alguns cristãos pensaram sobre o suicídio?
Quais destes pensamentos conheceram eco, repercussão?
Esta imagem, como vimos, é ilustração da "Divina Comédia". Livro importantíssimo, não só para a história da literatura ocidental, mas também para a história do Cristianismo.
Ou não?

segunda-feira, 8 de março de 2010

Infográficos esquisitos

Geralmente, nosso cotidiano atribulado e repleto de afazeres tende a anestesiar o corvo-crítico que mora dentro de cada ser humano e, neste ponto, eu arriscaria dizer que os jornais são em boa parte responsáveis por essa sensação de sufoco e correria do dia-a-dia, na medida em que tentam nos fazer crer que muitos fatos acontecem no mundo e que precisamos tomar conhecimento de todos eles. 

Debaixo desta avalanche de novidades (supostamente) importantes e decisivas, o público deve não se deixar levar por uns e outros engodos que tentam passar despercebidos. Entre eles, biquei um infográfico sobre o programa nuclear do Irã que não merece um adjetivo melhor do que "esquisito".


Em algum ponto dos cursos universitários de jornalismo, os focas ainda em processo de formação para virarem burros (ou cobras, a depender do caráter de cada um) devem aprender sobre a necessidade de tornar a matérias mais interessante com fotos e infográficos que ilustrativos. O que talvez não ocorra à maioria deles - pelo menos a deduzir do que vejo efetivamente publicado nos jornais da "grande mídia" - é que as funções de "ilustrar" e "informar" frequentemente não são compatíveis: uma boa evidência disso é o fato de que a embalagens de produtos alimentícios advertem o consumidor sobre a "foto ilustrativa", indicando uma certa chave de leitura da imagem. 

Esse tipo de postura ética, ainda que soe meio infantilódie, parece faltar no caso do gráfico acima. As normas mais elementares da estatística rezam que gráficos devem ter uma escala. Uma escala é uma associação entre dois parâmetros: um geralmente mais abstrato (um número ou porcentagem) e um mais concreto (distâncias ou proporções espaciais). A explicação pode parecer, mais uma vez, bem imbecil, mas ainda assim a redação parece tê-la esquecido ou ignorado. Deixando de lado os rigores da informatividade e da estatística, uma outra explicação se mostra bem mais simples e plausível: a imagem não tem a função informativa, mas sim ilustrativa. 

Neste caso, a associação não é mais entre números e espaçoes, mas sim entre cores e axiologias. Enquanto os produtos obtidos pelo enriquecimento nuclear iraniano não incomoda os interesses ocidentais - se é que esse termo cabe aqui -, a cor verde recobre os gráficos de porcentagem de urânio 235 e do desenrolar cronológico. Vale apena notar que a legenda diz "mais de 1 ano", o que, segundo a lógica, pode significar 2 anos, 3, 5, 10 anos ou qualquer número acima disso, já que, matematicamente, todos estes valores são maiores do que um. Parece imbecil dizer isso, mas é o que de fato está ali publicado.

Por um toque de mágica, os seis meses que se seguem a este período de "mais de um ano" se recobrem de um vermelho de alerta para o grande risco do Irã atingir os 90% de enriquecimento de urânio e finalmente ter condições de construir uma bomba atômica. O inapelável devir do tempo leva a uma catástrofe diabólica cujo resposnável não é ninguém além do governo iraniano. O que o infográfico - conforme nos é apresentado - parece ignorar é que o desenvolvimento da história tem vicissitudes e acidentes não previsíveis por raciocínios indutivos. Se tudo ocorresse como modelos matemáticos, então poderíamos prever o futuro com uma precisão absoluta em um prazo de centenas de anos, já que até mesmo planetas já foram descoberto dessa maneira. No entanto, o curso da história não se deixa aritmetizar e sempre permite os mais diversos desvio. Desde catástrofes naturais até golpes de estado e reviravoltas eleitorais podem mudar todo o rumo daquilo que era previsível pelos cálculos demonstrados por engenheiros e físicos. Um último argumento para desconfiar da capciosidade do gráfico disfarçado de inocente é o fato de que os Estados Unidos invadiram o Iraque sobre o pretexto de encontrar e desativar as supostas armas nucleares mantidas pelo governo iraquiano, que nunca foram encontradas pelos agentes americanos desde o início da guerra em 2002.

Peço desculpas se menosprezei a inteligência de alguém com explicações tão exageradamente primárias e até mesmo imbecis. Mas, se o material publicado nos jornais não correspondem até mesmoa  raciocínios lógicos tão toscos como estes que eu trouxe aqui, então o que nos chega em forma de notícia deve estar ainda abaixo deste nível. E uma tal grosseria com o senso crítico do público não merece nada além de outra grosseria de mesma natureza.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Se tudo isto estiver ficando insuportavelmente enfadonho, por favor, digam. Seja como for, hoje me parece um momento de especial catapulta, pois alcançaremos, por fim, o segundo testamento bíblico e, portanto, a narrativa de Cristo. Ainda há outros suicídios no primeiro testamento, mas passarei por eles, por inabilidade minha em deles extrair qualquer coisa muito mais rica do que já pude observar nos casos antes analisados.

No segundo testamento, pelo que me consta, há apenas um suicídio. O que, por si só, pode espantar frente aos sete, oito do primeiro, e constituir matéria de análise. O suicídio é de Judas Iscariotes. Personagem famoso. Nem sempre muito querido. Vide sua malhação nos sábados de aleluia.

Assim, é narrado – apenas no Evangelho de Mateus – seu suicídio:



“Quando Judas, que o traíra (a Cristo, obviamente), viu que o haviam condenado, ficou com remorsos, foi devolver as trinta moedas de prata aos sumos sacerdotes e anciãos, e disse: “Pequei, traindo sangue inocente”. Eles lhe disseram: “O que importa isso? O problema é teu!” Ele atirou as moedas de prata no Santuário, saiu e foi enforcar-se.” (capítulo 27, versículos 3-5)


Surpreendo, nesta narrativa, uma inversão radical, termo a termo, em relação às outras. Ou, mais justo, sou surpreendido, inequivocamente, por esta narrativa, após ler as anteriores.

Como vimos e, quem sabe, conviemos, os suicídios de Sanção, Saul e Abimeleque, em primeiro lugar, eram decididos em um momento em que a morte era certa, inevitável. A morte de Judas, por sua vez, nada tinha de improtelável.

Em segundo lugar, os primeiros figuravam, sempre, personagens principais, extraordinários: eram juízes, reis, salvadores de Israel do poder dos filisteus. Judas é, seguramente, coadjuvante, apesar de imprescindível, na narrativa cristã; afinal, quem salva, ali, é Cristo.

Em terceiro lugar, o suicídio dos primeiros foi deliberadamente por eles escolhido, para que sua morte resultasse digna e memorável, tão digna e memorável quanto já o fora suas vidas. O suicídio de Judas, ao contrário, é escolhido porque sua vida resultou indigna. Não desconheço o fato de que muitos exegetas vêm aplacar o lugar de vilão de Judas na narrativa, elucidando que ele foi o escolhido por Deus para dar consecução a Seus desígnios etc. etc., mas prefiro, novamente, ater-me aos predicados bíblicos: pecador e com remorsos.

Este momento me parece uma virada histórica de grande relevância para uma “genealogia” (de brincadeira, no máximo) do suicídio: do suicídio como solução para uma morte digna para o suicídio como resolução de uma vida indigna.

Posso estar redondamente enganado. Corrijam-me, por favor.

Até semana que vem.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Diminutivo-Aumentativo

agradecimento especial: BBR

Tenho cada vez mais certeza de que o mundo da publicidade é uma nação estrangeira. Uns tratam-na com total indiferença, como se ela pretencesse ao conjunto dos elementos supérfluos e ruidosos (deturpando um pouco sua acepção da teoria da informação) do mundo que, se não fazem parte essencial da vida cotidiana, então merecem ser ignorados. Para outros, a publicidade se afigura como um estorvo, uma perturbação a ser evitada com um toque no controle remoto ou um virar de páginas da revista. Outros ainda se deixam fascinar pelo seu universo de roteiros engraçadinhos, de imagens coloridas e das promessas espetaculares encarnadas nos produtos. E ainda há aqueles que consomem a publicidade em si mesma como se ela se desse a oferecer ao invés de visarem os objetos anunciados (lembrando o raciocnínio auspicioso de Jean Baudrillard).




Este último caso me parece particularmente interessante por criar um efeito de certa forma ambíguo. Ao assumir o primeiro plano, a publicidade acaba desviando a atenção do objeto a ser divulgado propriamente, de modo que o consumidor não pode mais se lembrar de que marca ou produto se trata. Ao mesmo tempo, o poder de englobar o público no universo criado pelos anúncios que compõe uma campanha interfere diretamente nos hábitos do consumidor e passa a fazer parte de uma espécie de "background cultural" popular de tal forma que, por vezes, sequer notamos que determinadas expressões ou lugares-comuns nasceram de campanhas publicitárias. Este seria o caso por exemplo da incorporação ao cotidiano de marcas ao vocabulário (gilete, xerox), de expressões idiomáticas ("não é nenhuma brastemp", "imagem não é nada, sede é tudo", "você precisa rever seus conceitos"), de silogismos filosóficos ("é mais gostosa porque é mais fresquinha ou é fresquinha porque é mais gostosa?"), de alegorias (o leão do imposto de renda) ou então de personagens (Super 15, tio da Sukita, Gordinhos do DDD, São Longuinho etc). Com relação a esta função da publicidade de se infiltrar na vida cotidiana, a Schincariol parece ter uma certa preferência por esta estratégia,  como podemos ver pela nova campanha do Cervejão (Caso você não se lembre, foi a mesma Schin que tentou emplacar com a repetição incansável do bordão "Experimenta!").



Só para reativar a nossa memória publiciária, a campanha utiliza exatamente a mesma ideia básica do aumentativo usada, há alguns anos atrás, por uma campanha do jornal do Estadão, que trazia como slogan "o jornal que pensa 'ão'" (Percebam que pode-se vender jornais e cervejas com o mesmo argumento...).  Não vou discutir questões de originalidade, criatividade e plágio, pois esses conceitos funcionam na realidade de maneira bem diversa do que o imaginário coletivo costuma conceber sobre o "mundo da publicidade". O que me interessa de fato é o recurso argumentativo usado como carro-chefe da campanha e, principalmente, por que ele tem certos pontos fracos comprometedores.





Enquanto ação de marketing, não se pode dizer que não vai dar certo. Se o plano de mídia surtir efeito conforme planejado no papel, em breve milhões de pessoas estarão em mesas de bares repetindo o 'ão' viciadamente e isso pode ser considerado como uma evidência de sucesso da campanha. Mas, é evidente que essa tentativa de inculcar novos hábitos (inclusive linguísticos) pode fracassar se o consumidor for um só pouquinho astuto e atentar para os pontos que comentarei agora.



Ninguém precisa ser um especialista em gramática para perceber que a campanha aposta no aumentativo "ão" e seu uso como valorizador afetivo. Um carro bom se torna um "carrão", muito dinheiro se torna "dinheirão" e uma mulher estonteante se torna um "mulherão" (é interessante que certas palavras femininas se tornam masculinas quando passam para o aumentativo). Até aqui, não há nenhuma inovação espetacular por parte da agência, já que qualquer pessoa com grau zero de escolaridade conhece esse uso (ainda que não conscientemente). O primeiro truque capcioso é o fato de que as falas elaboradas para os vídeos comerciais frequentemente usam palavras terminadas em 'ão' que não são aumentativos e, portanto, não tem a valoração positiva dada por ele, por exemplo "azaração" e "exceção". A estratégia foi transferida também com habilidade para o aviso regulamentar obrigatório "aprecie com moderação".




Alguém poderia dizer que a questão de aumentativo é só um detalhe gramatical supérfluo que não interfere em nada na eficiência da campanha. Afinal, os consumidores não vão ficar em frente da tevê anotando as palavras para depois conferir se são de fato aumentativos ou não. É justamente essa analogia sutil que dá sustenta a criatividade da campanha. Um "jogão" é um jogo emocionante e um "corpão" é um corpo tentador, mas em "azaração", não temos outra escolha já que nunca poderemos dizer algo como "azaracinha" ou, ainda pior, "azaraça". A mesma coisa acontece com "exceção": nenhum falante nativo de português acharia normal dizer "excecinha". Sendo assim, qualquer palavra terminada em 'ão' (curiosamente, o português é uma das pouquíssimas línguas no mundo que pode recorrer a essa combinação de sons!) pode remeter ao bordão principal da campanha e trazer à memória os atributos da cerveja, independente de ser um aumentativo ou não. E, neste caso, acho que poderíamos sugerir a inclusão de outras palavras como "destruiçããão", "poluiçããão", "corrupçããão", "facçããão", "infecçããão", "eleiçããão" e, por que não?, a própria palavra "nããão". Evidentemente, a criação da agência teve a cautela de evitar palavras que pudessem ter associações com conteúdos polêmicos ou desconexos com os atributos da cerveja a serem destacados.

Ainda relacionado ao primeiro, o segundo truque - este mais problemático - está na depreciação proposital do diminutivo em detrimento da valorização do aumentativo. Esta parece ser uma manobra relativamente simples, eficiente e por isso muito empregada: de um lado, determinados atributos recebem uma valorização postiva; de outro, os aspectos negativos são demonizados e combatidos graças à intervenção salvadora do produto ou serviço anunciado. Qualquer espectador percebe isso facilmente em propagandas de inseticida, de banco, de provedores de internet e de remédios para cólica intestinal. Porém, ao tentar usar essa mesma técnica com o par aumentativo/diminutivo, a agência ignorou certos fatos do uso da linguagem e correu um risco que, embora não prejudique expressivamente as vendas, pode levar mais uma campanha da Nova Schin ao fracasso.


Supondo que o uso afetivo de diminutivos e aumentativos fosse também tão comum em outras culturas e idiomas quanto o é no Brasil, o tal risco de que falo não seria tão decisivo. Se o inglês contasse com tal estrutura morfológica, a campanha seria um sucesso estrondoso nos Estados Unidos, onde o "Super Size", o "Big Mac", o "Triple Whooper" e as atrizes pornô de seios planetários evidencia uma tendência da cultura norte-americana de associar o tamanho à qualidade. Porém, a peculiar cultura brasileira apresenta certas brechas que invertem essa lógica como no futebol, para retomar o Veneno Remédio de J.M. Wisnik. Ronaldo Fenômeno, logo em seu começo de carreira, tinha o nome de Ronaldinho. Depois de certos fatos que lhe mancharam a popularidade e da ascenção de Ronaldinho Gaúcho, ele perdeu seu diminutivo carinhoso e virou apenas "Ronaldo". Mesmo assim, o Ronaldão ainda ficou reservado ao antigo goleiro do Corinthians que claramente nunca atingiu e nunca atingirá o estrelato de seus correlatos diminutivos. 
Ninguém pode duvidar do talento de Robinho, mas até hoje nunca conheci um jogador que tivesse a coragem de depreciar o seu diminutivo se apresentando como Robão. A lista poderia se estender infinitamente, mas só esses exemplos já comprovam que, no Brasil, jogador bom é jogador no diminutivo. Mas, como o Brasil não é só futebol, existem também muitos outros casos em que o aumentativo não é lá tão positivo, como deixa escapar a própria campanha da Nova Schin.  



Tabelinha ou tabelão?


Em rodinhas masculinas, quando o assunto é mulher, o aumentativo aparece como elogio e pode assumir diferentes formas: morenassa, peituda, mulherão e por aí vai. Justamente onde era o acerto era mais fácil, os roteiristas da agência deram um escorregããão: um biquininho me parece muito mais tentador do que um biquinããão (a não ser que estejamos na década de 40, é claro). E já que o assunto é este, ver uma mulher de calcinha é bem mais interessante do que uma mulher de calçããão.


Numa roda de amigos sentada em uma mesinha (nunca em um mesããão) de bar, pode cair muito bem pedir uma caipirinha, mas imagino que um caipirããão não seja tão bem-vindo. E, neste mesmo bar, um chorinho brasileiro pode deixar a noite mais agradável, mas um chorããão só pode ser um vocalista de banda de rock decadente ou então uma pessoa que só reclama. Pra acompanhar uma feijoada, nada como uma farofinha, mas um farofããão já não parece mais tão convidativo. E, na hora de ver o futebol, pode ter até paradinha na hora do pênalti. Mas, como o goleiro Rogério Ceni deixa perceber, um paradããão soa como algo um tanto esquisito. Em inúmeros casos, a relação se inverte: não só o diminutivo ganha uma conotação carinhosa e supreendentemente intensificadora, quanto o aumentativo passa a ser pejorativo. Para ofender alguém, deve-se chamá-lo de c*zããão, o diminutivo soaria ou como um chiste ou como um despropósito. Se o aumentativo fosse sempre positivo, o Domingããão do Faustããão seria o programa de televisão mais elogiado, o que claramente não procede.

A estratégia da campanha é bem habilidosa mas, para surtir o efeito pretendido, precisa atropelar certas sutiliezas do uso pragmático da língua. Apesar de parecerem oposições inconciliáveis, aumentativo e diminutivo podem ter efeitos de sentido bem diversos a depender do contexto em que são empregados, Especialmente no Brasil, o diminutivo conquista um espaço grande e intensifica supreendentemente os aspectos afetivos positivos. Talvez isso não prejudique de fato o desempenho da campanha, mas a Nova Schin pode, mais uma vez, jogar milhões pela janela com uma campanha mal-planejada e vai acabar virando o cervejããão do tiozããão.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Algumas horas depois do habitual, mas cheguei. Encontrei, nesta semana, aquela entrada de “suicídio” no Índice Doutrinal de uma “Bíblia”, que procurava há semanas. Desta vez, este índice tem nome de “Dicionário Prático”. Ei-la, na íntegra:


“Suicídio. É o ato voluntário de pôr fim à própria a vida, feito com plena posse das faculdades mentais. O suicídio é pecado mortal porque só Deus é o Senhor absoluto da vida e da morte. Portanto, dispôr alguém da própria vida, é usurpar um direito exclusivo de Deus. Não se consideram suicidas aquêles que se mataram num momento de loucura, ou que morreram em conseqüência de algum feito com intenção diversa, embora reconhecesse antes seu risco, como por ex. o salvar uma pessoa que se afoga ou està num incêndio pode levar o salvador à morte, sem que seja considerado suicida. A morte de Sansão não foi suicídio, mas sòmente morte indireta de si mesmo, i.e., Sanção quis diretamente matar seus inimigos e só indiretamente permitiu sua própria morte, uma vez que esta devia resultar da mesma ação, pela qual matava seus adversários. Cf. Princípio de duplo efeito.

Só Deus, que é o Senhor da vida e da morte, pode permitir ao homem dispôr de sua própria vida. O exemplo de um ou outro santo que se tenha matado para salvaguardar a castidade ou por outro motivo costuma se explicar ou por uma inspiração, pela qual Deus lhe autorizou a ação ou por ignorância inculpável.”


Isto é: conduzir condutas. Antes fosse coisa de alguns. Antes não fosse esta, hoje, a tarefa precípua das escolas, da publicidade, da ciência etc.


Enfim, ao Sanção. Sua narrativa é belíssima e vale a pena ser lida inteira. Compõe, também, o livro dos “Juízes”. Após Deus tê-lo ajudado a se safar, algumas vezes, das armadilhas de sua esposa, Dalila, incitada pelos filisteus, raparam as sete tranças da cabeleira de Sansão e ele perdeu sua força.

Prenderam-no, furaram-lhe os olhos, levaram-no a Gaza.

Quando já estavam todos alegres, solicitaram que ele viesse dançar. Antes desta humilhação última, contudo, Sanção pediu a Deus as forças para se vingar. Seus cabelos já estavam crescendo novamente. Apalpou as duas colunas do templo de Gaza e afastou-as, o templo desabou, matando cerca de três mil filisteus, matando mais filisteus do que matara em toda sua vida (não foram poucos) além de matar a si mesmo.


Mais uma vez, vejo aqui exemplo de uma morte que se prefere à humilhação, a uma morte indigna. Não sei se Sanção tinha em mente que sua vida pertencia exclusivamente a Deus. Não está explícito na narrativa. Sabe-se lá qual é a narrativa, mesma e primeira. Não interessa muito qual é esta narrativa. E não interessa fazer exegese dela, para saber o que Sanção tinha em mente. Novamente, a nós só interessa a superfície.

E nos interessa que o suicídio possa ser, mais mesmo que escapatória de humilhação, uma morte heróica. Morte por um princípio. Morte gloriosa. Quem sabe, um vovô do que veio a se chamar, entre nós, kamikaze.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Você conhece a Costa Rica?

Em semana de encontro da Cúpula da América Latina e do Caribe, em Cancun, protagonizado pela criação de um novo bloco continental (sem EUA, Canadá e Honduras, porém com Cuba) e pelo apoio maciço dos países da região à posição argentina no imbróglio Malvinas/Falklands, achei adequado falar de um país localizado no meio da América Central, tão pequeno quanto peculiar em seu contexto, peculiaridade essa que há muito me fez nutrir uma afeição genuína. Falemos, pois, sobre a Costa Rica.

Descrita em alguns anúncios promocionais como “uma democracia que fala espanhol”, Costa Rica sofreu seu último golpe militar de Estado em 1917, abolindo seu exército em 1948 (atitude inédita à época) e transformando seus quartéis em museus. A singularidade costarriquenha na conturbada América Central é cultivada por seu povo, que vê nessa diferença o fundamento de sua identidade nacional. De fato, no ano que passou o país celebrou 120 anos de democracia, ainda que tal conta esqueça o período de ditadura do general Tinoco (1917-9) e a guerra civil em 1948.

“Descoberta” por Colombo em 1502, a região conhecida onde hoje se localiza a Costa Rica era, paradoxalmente, marcada pela ausência de ouro e populações indígenas consideráveis (ao menos em comparação com terras mais ao norte do istmo). Esses fatores, somados à alta incidência de mosquitos transmissores de varíola, levou o governador espanhol da então Capitania Geral de Guatemala (centro administrativo da região) a declarar, em 1719, que se tratava da “mais pobre e miserável colônia espanhola em todas as Américas”. A escassez de mão de obra indígena foi determinante para a formação da população costarriquenha, visto que os espanhóis que lá se instalaram eram obrigados a trabalhar a própria terra, apropriando-se geralmente da quantidade de terras que conseguia cultivar. A falta de braços para a lavoura contrastava com o quadro verificado nas vizinhas Guatemala e El Salvador, marcadas por grandes populações indígenas, convertidas pelo colonizador europeu em mão-de-obra escrava. Assim, ao se tornar independente em 1821, Costa Rica não possui uma burguesia feudal nem uma Igreja forte e rica, embora a ascensão do café como principal fonte de receitas reafirme a crônica falta de trabalhadores. De acordo com Alain Rouquié (em “Guerra e Paz na América Central”), um certo espírito pioneiro e a existência de terras livres para quem quiser se estabelecer contribuíram para gerar um clima de sociabilidade estendida, vinculado com a propriedade familiar e a preponderância de valores privados.

A permanente necessidade de mão-de-obra levou a concessões referentes a salários e incentivos outros, tais como estabelecimento de períodos de férias e políticas de saúde. Nesse contexto, a violência institucional indiscriminada (comum em outros países da América Central) não se justificaria na Costa Rica, visto que um ambiente conflituoso comprometeria a própria viabilidade do país. A própria extinção do exército se deu após um contexto de ruptura institucional em 1948, graças ao receio dos agentes sociais da época do potencial desestabilizador da manutenção de forças armadas regulares; desde então, a segurança pública e manutenção da ordem é empreendida por uma Guarda Nacional. Essa especificidade trouxe ao menos dois resultados benéficos:

1) Liberou recursos a serem investidos em áreas prioritárias, como educação (94,9% da população é alfabetizada; na vizinha Honduras, 64,5%), e saúde (a expectativa de vida é de 77,58 anos; em Honduras, de 71,5; no Brasil, 71,99) hoje a Costa Rica gasta apenas 0,4% do PIB com a Guarda Nacional (é o 164º país no ranking da CIA; o Brasil é o 62º, com 2,6%).

2) Assegurou a legitimidade da Costa Rica como país-mediador de conflitos na América Central.

Os predicados democráticos foram elevados a novo nível após a declaração do então Presidente Luis Alberto Monge Álvarez, que, em 17.11.1983, declarou a neutralidade perpétua, ativa e não-armada da Costa Rica. A neutralidade é instituto jurídico pelo qual um Estado se abstém de tomar parte entre conflitos entre terceiros; o território de um Estado neutro é inviolável. Posteriormente transformada em lei, a declaração de neutralidade perpétua e ativa fundamentou o protagonismo costarriquenho na iniciativa de pacificação da América Central na década de 1980 – Grupo de Contadora (que renderia o Prêmio Nobel da Paz de 1987 ao então presidente Oscar Arias) –, estabelecimento do Ano Internacional da Paz pela ONU (em 1986) e, recentemente, gestões para o tratamento da crise institucional em Honduras, novamente sob os cuidados do Arias, eleito para novo mandato em 2006. Todos esses elementos justificam o apelido de “Suíça latino-americana”, o qual é visto com bons olhos pelos próprios costarriquenhos.

A preocupação com a proteção dos direitos humanos é outra característica geralmente associada à Costa Rica, cuja candidatura para sediar a Corte Interamericana de Direitos Humanos à época de seu estabelecimento encontrou pouca oposição. Essa Corte, aliás, é baseada na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como “Pacto de San Jose da Costa Rica”. A Corte IDH, aliás, é cenário para ao menos um episódio pitoresco que demonstra a maneira costarriquenha de tratar a temática dos direitos humanos. Em 1981, nos primórdios do sistema de proteção regional, ansiosa pelo seu efetivo funcionamento após cerca de 2 anos sem que nenhuma propositura ingressasse no sistema (lembrando que diversos países da América Latina eram governados por ditaduras no começo da década de 1980), o Estado costarriquenho resolveu ingressar com uma ação contra si mesmo (Assunto Viviana Gallardo e outras), franqueando à Corte IDH decidir se suas ações constituíam violações de direitos humanos consagrados no Pacto de San Jose; embora reconhecesse a boa-fé costarriquenha, a Corte julgou o pedido improcedente.

Para não dizer que falei apenas de flores, Costa Rica muitas vezes é tachada de protetorado norte-americano, devido aos grandes investimentos desse país na democracia centro-americana e nas relações bastante próximas entre San Jose e Washington. Os EUA viam na Costa Rica um paradigma a ser exportado para os países vizinhos, uma vitrine de prosperidade a concorrer com os regimes de inspiração socialista que grassavam na região. A influência norte-americana se deu, ainda, na resistência costarriquenha em aprofundar processos de integração econômicas na América Central, privilegiando sua inserção no mercado global (tal como propugnado pelo Partido Republicano dos EUA). Iniciativas como o estabelecimento de estruturas de integração regional (SICA – Sistema da Integração Centro-Americana) e o amplo debate (decorrente de viva oposição por setores da sociedade) antes do estabelecimento de área de livre comércio mais amplo (no caso, a DR-CAFTA – Dominican Republic-Central American Free Trade Agreement, ratificada pela Costa Rica após aprovação em plebiscito realizado em 2007) demonstram a mitigação influência norte-americana sobre a nação centro-americana.

Por esses e (diversos) outros exemplos que Costa Rica figura nas primeiras posições em índices de qualidade de vida, o que é facilitado por sua biodiversidade única; o país possui 4% de todas as espécies conhecidas em 0,03% de toda superfície terrestre, o que lhe dá o título de campeão mundial em densidade ecológica. Com 23% de seu território dentro de áreas de proteção ambiental, Costa Rica também lidera listas de países ambientalmente corretos, ao lado de países como Suíça e Islândia. Essas informações asseguram a legitimidade necessária para a defesa, pelo Estado costarriquenho, de medidas de vanguarda na seara ambiental, como o redirecionamento de gastos militares para investimentos destinados a medidas contra a mudança climática.

Concluo minhas breves considerações com a estrofe de uma canção composta pelo poeta José Basileo Acuña Zeledón, um instantâneo do "ser" costarriquenho:
Que este Valle Central en que vivimos
sea una copa de Paz abierta al cielo,
que contenga y difunda a todo el mundo
la Paz que anhela y vive Costa Rica,
la Paz Eterna por ser Paz del alma
hecha a imagen de Dios para servirle
y servir a los seres que ha creado.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Orgulho e preconceito

Quando eu era um corvo filhote ainda, admirava o hábito dos adultos de ler jornal. Para mim, ler jornal era algo tipicamente adulto. Criança brinca, adulto lê jornal. Um jornal nunca poderia ser um objeto infantil: um pedaço de papel cinzento e áspero, em formato inexplicávelmente grande que tampa toda a cara da pessoa quando aberto. Também não tem figuras coloridas (não, pelo menos, como nos "livros infantis") e divertidas, por vez ou outra uma foto de alguém importante que eu não sabia quem era ou então um gráfico cheio de numerozinhos. Então eu, no meu imaginário de corvo de poucas penas e muita ingenuidade, pensava: "escrever no jornal deve ser uma coisa muito séria".


Hoje, a mesma pergunta volta à minha mente, mas com uma penugem um pouco diferente: "o que é preciso para ser jornalista?". Se eu for tirar minhas próprias conclusões a partir do que vejo no produto dos jornalistas - obviamente, os jornais -  provavelmente vou chegar a uma única resposta: nada. Queria ressaltar que minha pergunta não chega ao ponto de indagar sobre os dotes de um bom jornalista. Apenas me pergunto sobre os requisitos mínimos para se tornar um jornalista, um ser humano cuja voz soa mais alto e mais notável na esfera pública do que a voz de outros seres humanos. Tudo bem, só com essa breve observação já descobri que - por sorte ou azar - nunca poderei ser um jornalista: sou um corvo, e não um ser humano e, portanto, não tenho voz. Mas, deixando esse fato de lado, acho que não preciso de mais nada. Não preciso de conhecimentos técnicos, não preciso de formação humanística, não preciso de capacidade de argumentação e análise e nem mesmo de um estilo bem elaborado. Pelo menos, é isso que posso concluir depois de ler o texto "O caso Maitê Proença", escrita por um colunista da Folha Online que atende pelo nome de João Pereira Coutinho. 

Resumindo em poucas palavras, o texto nada mais é do que um comentário sobre o episódio em que Maitê Proença faz piadinhas de mau-gosto discriminando os portugueses em uma matéria feita para o seu programa no canal GNT. Os portugueses travaram conhecimento do fato, se sentiram ofendidos e Maitê foi obrigada a se retratar em seu programa. Até aqui, nada de surpreendente: a atriz cometeu gafes preconceituosas que poderiam ser facilmente evitadas (pelo seu próprio bom-senso ou pelo bom senso do diretor do programa) e teve de pedir desculpas formais por isso. O que realmente surpreende é o fato de a coluna tentar defender as discriminações lúdicas de Maitê usando para isso argumentos bem pouco razoáveis. E, como eu sempre gosto de fazer, vamos direto ao ponto da discórdia: o texto. 


Nos primeiros parágrafos, o colunista introduz o tema com um trecho narrativa que dá ao leitor a impressão de estar lendo um conto ou uma crônica em tom que soa bem coloquial e despojado. Apesar do nariz de cera bem molinho e suave, o leitor atento não se deixará ludibriar pelo tom pejorativo das metáforas e comparações usadas pelo redator. Qualquer leitor que tiver estudado direitinho o conteúdo programático de redação para o vestibular, vai perceber também que, não por acaso, estas mesmas metáforas e comparações são acompanhados de hipérboles pouco inocentes. Seria uma prova de muita ingenuidade acreditar que estas construções - frequentemente mutiladas nos exercícios escolares - ocorram juntas por uma mera coincidência. Como um sorriso de canto de boca que desqualifica aquilo que se diz, o exagero proposital das expressões "...como se a Alemanha nazista tivesse invadido a Polônia novamente", "como se  o Palácio do Planalto tivesse bombardeado o mosteiro dos Jerónimos" e "como no antigo Faroeste" mal escondem a intenção de desqualificar o ponto-de-vista dos portugueses. 

Mas que ninguém diga que João Pereira Coutinho está tentando enganar os leitores, pois ele próprio assume abertamente que exagera em tais comparações na frase que encerra o quinto parágrafo: "Invento, claro, mas vocês percebem a idéia". O que deveria ser, em princípio, um motivo de descrédito acaba funcionando como uma estratégia para reforçar o laço fiduciário (já criado na introdução narrativizada, a propósito) entre redator e leitor. Não sei se minhas concepções sobre jornalismo e comunicação estão tão equivocadas assim, mas não creio que os internautas fiem sua confiança nos jornalistas para ouví-los falar "inventei", carimbado e assinado com um cínico "claro" que não deixa ao leitor outra opção a não ser concordar com a piscadela verbal do redator ou afrontá-lo abertamente. É certo que este gênero permite mais flexibilidade do que notícias sobre mercado financeiro ou política. Ainda assim, não pude deixar de sentir uma certa desconfiança ao ler um texto feito por alguém que assume "inventar". Se este ou aquele trecho está inventado, conforme o próprio redator declara, o que impede que todo o resto também não o seja? E, neste caso, o que me levaria a crer em algo que, potencialmente, é inventado? Talvez a distância entre jornalismo e ficção não seja lá tão grande quando se pensa. Talvez.

Na segunda parte de seu texto, João Pereira Coutinho terminar de desfiar sua lista de preconceitos pátrios. Partindo de sua própria premissa colocada no sexto parágrafo, segundo a qual "nas piadas existe um fundo de ternura", o colunista tenta usar um malabarismo retórico bem inusitado para tentar validar as "piadas de português". Com um pedido de perdão a Deus entrecortado, o redator afirma abertamente no sétimo parágrafo  que as piadas de português transportam um fundo de verdade. Nem mesmo a sua religiosidade entre vírgulas consegue disfarçar sua tentativa de atribuir a uma "realidade" os fatos risíveis das piadas que, de fato, só refletem preconceitos e estereótipos. E estes, com toda certeza, não se originam de outro lugar senão das culturas. Se as piadas de português tivessem mesmo o fundo de verdade, como afirma o redator, então teríamos de ver piadas de português em todos os lugares do mundo, o que evidentemente não pode ser levado a sério. 

Para coroar este pensamento algo “ontologizante” de que as piadas de português são mesmo “a realidade”, o colunista chega a abrir mão de qualquer espécie de argumentação lógica e afirma que basta olhar e caminhar por Lisboa para atestar a veracidade das tais piadas. Mais uma vez, o laço fiduciário entre redator e leitor enforca este último ao declarar uma suposta obviedade, como se bastasse um ser humano poder caminhar e olhar para dar razão ao ponto-de-vista do colunista. Do outro lado da moeda, o rompimento com a perspectiva oferecida age também como uma ameaça implícita de depreciação: se algum leitor discordar dos preconceitos fantasiados de fatos, então a ele será imediatamente relegada a inferioridade daqueles que não são capazes de ver coisas “tão óbvias”. 

E, para aqueles que ainda não se convenceram da violência autorizada do texto de João Pereira Coutinho, o final do nono parágrafo pode tirar qualquer dúvida que por ventura ainda possa haver. Aparentemente sem vergonha daquilo que diz, o colunista coloca em letras nítidas sua agressão etnocêntrica ao inocentar as piadas sobre portugueses – afinal, “ainda têm piada” - e demonizar as piadas dos portugueses apelidando-as de “xenofobia”. Dito em outras palavras, fazer piada com “eles” é absolutamente válido, mas fazer piada com “nós” se torna um crime imperdoável. Visto desse modo, me parece uma linha de raciocínio bem similar àquelas usadas nas atividades recreativas escolares: empurrão no jogador do meu time é falta; no jogador do time adversário, é jogo de corpo. Sinceramente, não alimento a falsa esperança de que esse tipo de raciocínio desapareça da face da Terra. pelo contrário, ele é a base do processo de formação de identidade de qualquer agrupamento humano. Portanto, só poderá deixar de existir no dia em que os seres humanos deixarem de formar agrupamentos coletivos ou deixarem de existir. Eu, como um Corvo Crítico, considero particularmente mais provável e desejável a segunda opção do que a primeira. 

Ao contrário dos animais silvestres, da flora marinha e dos corvos-críticos, o preconceito e a discriminação nunca entrarão em extinção e talvez eu seja um pouco pessimista em dizer que é vão lutar contra. No entanto, se não podemos erradicar esse parasita invisível que se multiplica utilizando como vetor as mentes humanas, temos pelo menos o dever de evitar que ele se utilize de jornais e revistas como hábitat natural. Afinal, um jornalista que tem o poder de publicar em um meio de massa de tão vasto alcance e, ainda além, recebe dinheiro para isso não tem o direito de pulverizar um tal preconceito irracional e, portanto, não merece outro nome senão o de parasita. Imagino que algum jornalista possa se sentir ofendido, tomar as dores de João Pereira Coutinho e tentar depredar também minha credibilidade, criticando a qualidade do meu texto e denunciando minhas comparações exageradas, meu tom excessivamente coloquial e meu preconceito contra jornalistas. A propósito, a única coisa que fiz foi copiar exatamente as características daquilo que me é dado a ler pelo jornalismo.



João Pereira Coutinho: que sua praga não se espalhe, senão iremos detetizar você e os preconceitos infectados em sua coluna.