segunda-feira, 29 de março de 2010

Esporte nacional e jornal espetacular

Não, eu não me confundi na hora de escrever o título de hoje. A inversão poderia ser apenas um anagrama engraçadinho de dois programas de uma grande emissora de televisão aberta e seria bem melhor se assim fosse. Infelizmente, o trocadilho me parece na verdade uma fórmula telegraficamente condensada do que vemos na postura do jornalismo na cobertura de julgamentos polêmicos como o do casal Nardoni. Essa iluminação me veio quando assistia um jogo de futebol televisionado pela tal emissora e notei que os narradores insistem em preencher toda lacuna de silêncio com comentários dispensáveis e, muitas vezes, com pouco nexo. 

A cada toque na bola, os narradores abrem a boca para descrever qual pé tocou na bola, qual jogador fez o toque, qual recebeu, em que região do campo que foi, se tinha algum jogador adversário marcando o lance e se o passe foi bom. Daí, eles passam a relatar o número de passes feitos por cada time até o momento, quantos passes o time dá em média por jogo e sempre partem para estatísticas e tabus retirados de alguma fonte eletrônica. Quando o lance é de falta, o falatório pode se multiplicar astronomicamente: os comentaristas desfiam dezenas de suposições, julgam a interpretação do juiz, analisam o seu ângulo de acordo com sua posição no campo, interpretam a intenção do jogador faltoso ou então a tentativa de simulação do jogador rolando no chão. No caso da cobertura do julgamento dos Nardoni, exatamente a mesma tagarelação vai reproduzindo o desenrolar dos fatos.

Como urubus sedentos pela carne de um cadáver moribundo, os jornalistas se empoleiram à espera de uma novidade qualquer, por menor que seja, para se alimentar dela e transformá-la, assim como o faz o narrador esportivo, em um lance de jogo a mais, passível de dezenas de comentários, na maioria das vezes supérfluos. E, quando isso não basta para encher as pautas, é só recorrer ao tira-teima para observar tudo de uma outra câmera e multiplicar tudo aquilo que já foi dito, mas de outro ângulo. 

A bem da verdade, não sou contra este hábito dos narradores esportivos. Muito pelo contrário, compreendo que ele tenha a função de criar efeitos de realidade e de dinamismo na transmissão de qualquer esporte (creio que só o xadrez e o poker dispensem esse tipo de recurso). Quando o narrador descreve os movimentos dos jogadores e da bola, ele reproduz as cenas sonoramente na imaginação do expectador e o envolve nos movimentos do jogo, instala-os dentro do próprio "momento imediato" do jogo  e a todo momento dá a impressão de que algo pode acontecer. Os jornalistas também não pretendem outro efeito quando publicam compulsivamente matérias sobre um mesmo evento (neste caso, o polêmico julgamento), ainda que as "novidades" veiculadas não alterem substancialmente o desenvolver dos fatos tomado em sua totalidade. 

No entanto, existe uma diferença fundamental que inocenta os narradores esportivos e condena os jornalistas. Ao contrário do esporte, o jornalismo não se destina ao entretenimento - ou pelo menos não deveria. Narradores e comentaristas podem dizer superfluidades o quanto quiserem, até que isso lhes manche a reputação entre seus colegas de trabalho. O jornalista, por sua vez, não tem o direito de usar o alcance de sua voz para falar qualquer coisa. O narrador não precisa necessariamente acrescentar algo substancial ao lance do jogo que está narrando - seu objetivo principal é envolver o torcedor e ele terá sido bem-sucedido se conseguir despertar neste toda a sorte de emoções que uma disputa esportiva pode causar - raiva, medo, alegria e ansiedade. Do outro lado, um jornalista que busca estes mesmos efeitos ou não deve ser levado a sério ou está contrariando abertamente os juramentos tão difundidos de compromisso com a verdade e com a confiabilidade da informação. Gostaria de lembrar ainda que, na maioria dos casos, os textos de coberturas como essas (que também incluem acidentes áereos, sequestros ou ataques armados de qualquer espécie) não trazem nada substancial que o leitor possa guardar para si quando a poeira dos acontecimentos já estiver baixado. 

Estas tentativas de mergulhar o público em uma realidade recriada não é nenhuma novidade, ao contrário ela se manifesta tanto na evolução gráfica dos video-games quanto nas descrições minuciosas na literatura. E também, não nos esqueçamos, nas locuções de futebol. O que parece realmente intrigante é que o jornalismo utilize impunemente os mesmos recursos da transmissão esportiva, dos videogames e da literatura.

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