quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Por fim, nesta semana, voltamos aos esperados trilhos analíticos de nosso percurso, voltamos a alguma possível sobriedade. À Bíblia, sem delongas.


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Saul e Abimeleque são personagens do Primeiro Testamento, portanto, remontam à narrativas pré-cristãs. O primeiro pertence ao “Primeiro Livro de Samuel”, o segundo, ao “Juízes”, ambos livros escritos pelo mesmo redator, entre 1230 e 1220 a.C.


Abimeleque reinou sobre Israel, porém Deus inspirou um mau espírito entre o povo de Siquém e ele. Abimeleque tomou a cidade, matou toda população que estava no campo, "semeou a terra de sal." Os habitantes da torre, contudo, sabendo disso, marcharam contra ele.

“Então uma mulher, lançando de cima uma pedra de moinho, feiu-lhe a cabeça, fraturando o crâneo [sic]. [Abimeleque] Chamou imediatamente seu escudeiro e disse-lhe: “Tira a tua espada e acaba de matar-me, para que não se diga que fui morto por uma mulher!” Seu escudeiro o feriu, e Abimeleque morreu.” (versículos 53 e 54, do capítulo 9 de Juízes).

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Por sua vez, Saul, que não apenas reinou sobre Israel, mas que foi o primeiro eleito por Deus para reinar sobre Israel, tendo lutado contra os filisteus toda sua vida, teve seus filhos todos mortos pelos filisteu, além de se encontrar encurralado por eles, quando

“Disse ao seu escudeiro: ‘Tira a tua espada e transpassa-me, para que não o venham fazer êsses incircuncisos, ultrajando-me!” Mas o escudeiro não o quis fazer, porque se apoderou dêle um grande terror. Então tomou Saul a sua espada e jogou-se sobre ela.” (versículo 4, capítulo 31 de I Samuel).

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Os dois livros integram os “Livros da história do povo de Deus”. Por “povo de Deus”, entenda-se, obviamente, povo israelita. São livros que poderíamos chamar históricos, se afrouxarmos um pouco os rigores que a ciência humana “História” impôs a si mesma a partir do século XVII ou XVIII. De todo modo, são alguns dos poucos livros que restaram destes e sobre estes momento e espaço históricos.


Como é de se esperar, não narram o cotidiano tampouco a história dos infames (sem fama). Ao contrário, narram as grandes narrativas, tanto quanto possam ser extraordinárias, de homens extraordinários. Homens sempre inspirados por Deus, que receberam seus sinais, que com Ele conversam, que a Ele aderem, que d’Ele discordam, a Quem não compreendem. Mas, seja como for, lemos narrativas de homens que puderam entrar em contato direto com Deus. Com o único e absoluto Deus, aliás.


Hoje examinamos a morte de dois destes homens extraordinários. Ambos reis. Um deles, eleito por ninguém menos que o próprio Deus. Portanto, não se trata de homens quaisquer e de quem se deva desconsiderar o exemplo, apesar de ambos terem cometido equívocos e até mesmo “pecados”, em seu percurso.


Ambos escolhem a própria morte, quando já não é mais possível escolhê-la. A morte é certa. Muito mais do que escolher o momento da morte, estes reis escolhem o modo de morrer. Importa que a maneira de morrer seja digna e memorável. Importa que se lembrem dela com orgulho, que a tomem como exemplo.


Parece-me – e isto é apenas uma remotíssima hipótese – que já, nestas narrativas, o momento da morte é escolha que pertence ou que deve pertencer exclusivamente a Deus. Que o momento de encerrar a vida pertence, afinal, a Quem cedeu a vida.


Porém, se não se pode ou se não se deve escolher o momento da morte, é justo, é sensato que se escolha a maneira de morrer. Que não se morra, por exemplo, pelas mãos de quem fora seu inimigo durante toda a vida. Que não se morra, por exemplo, pelas mãos de alguém de sexo inferior, pelas mãos de alguém inferior ao próprio escudeiro, por exemplo. Evidente que não vou cair na armadilha perigosa demais de falar em nome de uma causa feminista anacrônica. Assim está na “Bíblia”. E só.


E suponho também – outra hipótese – que haja certa diferença entre estas narrativas e as clássicas, no sentido de que, nestas, o inimigo é de tal modo indigno que vale mais morrer pela espada do escudeiro do que pela dele, enquanto talvez nas clássicas, o inimigo seja escolhido a dedo, de tal sorte que seja, ao menos, tão digno quanto a si mesmo. O que faria justa a morte pelas mãos dele, e não de um hierarquicamente inferior.


Para me despedir, gostaria de dizer, também, que me parece que seja mais digno, nestas narrativas bíblicas, morrer pelas mãos de um hierarquicamente inferior do que pelas próprias mãos. Parece-me que esta morte por terceiros, ainda que decidida e ordenada pela própria vítima, possa talvez ofender menos a onipotência divina, não sei.


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Resta-me, ainda, agradecer as ajudas de meu caro Pantera nos comentários de meu texto da semana retrasada. Comentários de me lembrarei até o fim desta empreitada, sem dúvida.


Gostaria também de explicar, caso não o tenha deixado suficientemente claro, que não me interessará, aqui, discutir o Cristianismo. Por um lado, esta tarefa vai muito além de minhas possibilidades. Por outro, esta seria tarefa para o próprio Pantera, caso ele quisesse cumpri-la, já que o espaço dedicado à religião, neste blog, é dele, aos domingos. A mim me interessa, tão-somente, pensar de que modo o Cristianismo talvez tenha transformado a nossa maneira de experimentar o suicídio. Portanto, minha pergunta nunca será aqui: “o que?”, mas somente: “como?”.


Por exemplo, hoje, em São Paulo, não importa mais se alguém morre pelas mãos de um escudeiro, de um inimigo, de uma mulher, se alguém morre com alzheimer, se alguém morre todo cagado, não conseguindo mais se limpar, se não será mais lembrado ou se apenas será lembrado ridiculamente ou com piedade. Importa que se viva tanto quanto consiga. Interessa-me pensar como tudo isto mudou. E talvez o Cristianismo possa começar a oferecer algumas respostas. E talvez a "Bíblia" ajude.


Bem, semana que vem continuamos com alguns personagens do Primeiro Testamento.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Considerações sobre o samba a partir da apresentação de Ideval Anselmo

Não sei porque
Não sei porque
Felicidade dura pouco pra mim
Não sei porque não sei porque
Tristeza só no samba é que tem fim

["A Lua lá"– Ideval Anselmo e Zelão]
Aproveitando o clima carnavalesco, tive a felicidade presenciar, no último domingo, uma das apresentações do mestre Ideval Anselmo na Casa de Francisca, um pequeno e simpático espaço de realização de shows, situado em uma antiga casa restaurada próxima de onde moro. O que pude ver e ouvir ensejaram algumas reflexões sobre a riqueza cultural encapsulada na idéia de "samba" a partir do contexto paulistano. Tentarei, neste texto, pontuar alguma dessas reflexões, a partir de breves comentários ao espetáculo assistido.

Primeiramente, falemos de mestre Ideval. Trata-se do maior ganhador de sambas de enredo de São Paulo, ostentando a respeitosa marca de 23 campeonatos no grupo especial paulistano em 40 anos de carreira como compositor. Sua importância para o samba paulistano é constatada, dentre outra honrarias, pelo título de Embaixador do Samba de São Paulo, atribuído em 2005.

As informações acima, confesso, apenas pude pesquisar após o espetáculo de Ideval, o qual se fez acompanhar por Zelão – parceiro em diversas composições – e do Kolombolo Diá Piratininga – conjunto musical formado por jovens músicos comprometidos com a preservação cultural do samba paulista. Na aprazível casinha de Francisca, Ideval apresentou peças de seu repertório extenso, dentre elas Narainã, Mentira e A jangada, o mar e o amor, além de um "pout-pourri" de alguns dos sambas-enredo campeões em carnavais pretéritos, com destaque para Literatura de Cordel (1972), Uma Certa Nega Fulô (1974), Almondegas de Ouro (1979) e Velha Academia (1984). Convido o leitor a escutar as canções linkadas acima; fazendo isso, poderão verificar o esmero latente das composições, cuja elaboração foi objeto de animado bate-papo em forma de "causos" por Ideval e Zelão durante a apresentação na Francisca.



Ao término do espetáculo, além da grande satisfação por tudo que vi e ouvi, não pude deixar de pensar na forma como artistas do quilate de Ideval e Zelão são reconhecidos pelo grande público paulistano (e, aqui, me incluo igualmente), ainda mais quando comparado com seus homólogos fluminenses, como Silas de Oliveira, Cartola e Martinho da Vila. Alguém poderá lembrar da célebre frase de Vinícius de Moraes, para quem São Paulo seria o túmulo do samba; essa, porém, é uma visão que simplifica a amplitude do conceito de samba, ao identificá-lo exclusivamente ao contexto carioca, marcado pelo samba-de-roda de improviso, com aspectos de crítica social em formato de crônica (impossível não pensar em Machado de Assis!). Esse, embora tenha se tornado no samba "padrão" brasileiro (produto de exportação), tem a companhia de outras vertentes, como a baiana e a paulista, essa última dotada de melodia, harmonia e cadência próprias, as quais se fazem visíveis mesmo em temáticas "cariocas" (vide Samba do Arnesto e Trem das Onze, de Adoniran Barbosa).

As composições de Ideval e Zelão (ou as "maldades", como eles as chamam), para além da cena sambista existente na Barra Funda (à qual ambos eram "filiados", berço da tradicional escola Camisa Verde e Branco), embora retire elementos do contexto da periferia da Zona Oeste paulistana, transcende-os, evocando liricamente imagens da natureza, temas eruditos e situações cotidianas, lembrando, em alguns momentos, canções de Dorival Caymmi e Paulinho da Viola. Uma tese: Esse resultado talvez ateste a capacidade do estilo musical "samba" de representar uma síntese do "ser" brasileiro, ao possibilitar uma identificação dentre diversos artistas por todo o país a uma certa sonoridade, retratada na evocação de terminadas imagens nos ouvintes, mesmo que a partir de melodias, cadências e contextos bastante diversos. (Sei que é uma tese cujos elementos doutrinários e empíricos de explicitação são (ainda) escassos; espero, porém, poder desenvolver melhor essa idéia em textos futuros neste espaço.)

O fato de termos dois grandes compositores em São Paulo que fazem parte desse grande movimento e não têm o devido e merecido destaque foi o último pensamento que me acompanhou antes adormecer na noite do espetáculo na Casa de Francisca.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Como escrever um texto sem ter assunto

É Carnaval, e nessa época parece que vivemos uma espécie de suspensão no tempo: as atividades políticas param, os desesperos financeiros desaparecem e até mesmo a rodada dos campeonatos estaduais parecem perder a importância. E já que é Carnaval, absolutamente tudo está neste estado de transe, todas as equipes de jornalistas foram escaladas para cobrir os desfiles e blocos de rua, decidi escrever algo mais suave (com uma certa desconfiança de que ninguém, no Carnaval, fica em frente ao computador lendo blogs), pois estou meio sem assunto. E, um pouco entediado de caçar, sem sucesso, alguma presa interessante nos noticiários, o meu assunto é exatamente este: a falta de assunto. 

Eu não sei se poderia usar a palavra "reportagem" de maneira adequada para este caso. E não se trata, muito menos, de uma coluna ou de uma notícia. Como quer que seja, o texto intitulado '"El País': Com Serra ou Dilma, 'Lula vencerá' eleições de 2010" é uma verdadeira aula de como garantir seu espaço semanal sem ter assunto. O próprio título já adianta qual foi é a técnica milagrosa para isso: as devidas aspas já advertem ao leitor qual foi a fonte das informações. Se ele clicar no título, irá ainda confirmar que a redação conseguiu rechear sua pauta editorial sem precisar pagar um tradutor (isso é, alguém que desempenhe essa função profissionalmente) e nem os direitos de reprodução da notícia. Só bastou um redator capaz de ler em espanhol - o que é, de fato, quase um pré-requisito para os profissionais que queiram sobreviver na área - e um teclado que contenha uma tecla para aspas - até onde eu saiba, é muito difícil mesmo encontrar um que não a tenha. 

É certo que o texto tem o mérito de assinalar devidamente as referências usando os recursos típicos de discurso reportado. Exceto a cautela de atribuir as afirmações ao jornalista do "El País", não se pode encontrar quase nenhum sinal da voz própria do redator, que se limita a costurar os trechos aspeados da coluna citada com mecanismos de discurso direto. Fazendo uma brincadeirinha de "bloquinhos coloridos", parecida com aquelas dirigidas para ciranças em fase de desenvolvimento, recortei todos os trechos em que o redator demarca a voz do Outro e transcrevi aqui em baixo:



Um artigo no diário espanhol "El País" avalia que

A análise, assinada pelo correspondente do jornal no Brasil, Juan Árias, discorre
diz o repórter. 
afirmando que 
Juan Árias aposta que 
diz o analista
Porém, diz o texto
descreve
avalia Árias
Mas o autor acredita que 
Na opinião do correspondente,

Na avaliação do correspondente do "El País"


Feito isto, colei abaixo o que restou do texto sem as expressões acima, que substitui por colchetes, e o que sobrou são simplesmente as declarações do tal Juan Árias. Observe:

[ ]  qualquer que seja o vencedor das eleições de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sairá, simbolicamente, vencedor no pleito. 
[ ] sobre os dois principais pré-candidatos na disputa - a petista Dilma Rousseff, candidata do Planalto, e o tucano José Serra, da oposição - [ ] ambos, se eleitos, "seguirão o caminho" de Lula. 
"A partir do próximo dia 1º de janeiro, o Brasil será um Brasil sem Lula. O que acontecerá? Nada", [ ] 
"Continuará sendo um país com instituições democráticas consolidadas, que não apenas conseguiu sair, sem se quebrar, da crise mundial, mas que está crescendo; um país sem possibilidades de golpe de nenhum tipo e que, apesar de alguns rompantes populistas em alguns momentos - sobretudo pela influência do chavismo - não se deixou arrastar pelo populismo da vez na América Latina." 
[ ] a disputa presidencial deste ano será disputada. De um lado está Dilma, "uma espécie de sombra" de Lula, [ ] . "Se ela vencer, as eleições seriam na verdade um terceiro mandato de Lula e garantiriam a continuidade de um certo lulismo." 
[ ], "Dilma não é Lula". "É quase um anti-Lula porque, mais que uma iluminada e uma improvisadora como ele, é uma gestora, que carece do carisma transbordante de seu chefe", [ ]
Já Serra "suporia a alternância normal, interrompendo de alguma forma a continuidade do PT no poder", [ ]
[ ] o tucano não é um "anti-Lula" e que, portanto, a escolha entre sua política e a política atual é "um falso dilema". "Com Serra, o Brasil seria um país sem Lula, mas ainda com Lula, no sentido de que o governador paulista não nega nenhuma das conquistas sociais de seu governo." 
[ ] , a campanha de Serra não seria "contra Lula", mas "depois de Lula". "Para Serra, seu governo não seria uma fotocópia do passado social-democrata, mas uma página nova." 
[ ], "sem Lula agora, e talvez com Lula amanhã de novo, o Brasil é um país que tomou o trem na direção certa, que o levará a consolidar o milagre de seu desenvolvimento". 

O resultado parece muito aqueles exercícios de livro de inglês do estilo "preencha a coluna" e tenho a impressão de que - excetuando certos pontos de incompatibilidade gramatical - as expressões poderiam ser comutadas livremente. Mais uma vez, nenhum sinal de uma voz própria do redator, a não ser, é claro, a decisão capciosa de selecionar quais trechos devem ser reproduzidos e quais devem ser omitidos. Em alguns casos, a aspas serve para assinalar a fonte das afirmativas. Em outros, carrega um certo tom de crítica. Em todo caso, é uma técnica simples de produzir um texto, principalmente quando seu ganho mensal depende de tal produtividade. É assim que se pode atingir o seu limíte mínimo de caracteres sem ter nada realmente interessante para escrever. Eu também não tinha nada, mas consegui completar a minha falta de assunto justamente com a falta de assunto alheia. Se me perguntarem como, minha resposta é simples: só fiz exatamente aquilo que os jornalistas também fazem.