quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Considerações sobre o samba a partir da apresentação de Ideval Anselmo

Não sei porque
Não sei porque
Felicidade dura pouco pra mim
Não sei porque não sei porque
Tristeza só no samba é que tem fim

["A Lua lá"– Ideval Anselmo e Zelão]
Aproveitando o clima carnavalesco, tive a felicidade presenciar, no último domingo, uma das apresentações do mestre Ideval Anselmo na Casa de Francisca, um pequeno e simpático espaço de realização de shows, situado em uma antiga casa restaurada próxima de onde moro. O que pude ver e ouvir ensejaram algumas reflexões sobre a riqueza cultural encapsulada na idéia de "samba" a partir do contexto paulistano. Tentarei, neste texto, pontuar alguma dessas reflexões, a partir de breves comentários ao espetáculo assistido.

Primeiramente, falemos de mestre Ideval. Trata-se do maior ganhador de sambas de enredo de São Paulo, ostentando a respeitosa marca de 23 campeonatos no grupo especial paulistano em 40 anos de carreira como compositor. Sua importância para o samba paulistano é constatada, dentre outra honrarias, pelo título de Embaixador do Samba de São Paulo, atribuído em 2005.

As informações acima, confesso, apenas pude pesquisar após o espetáculo de Ideval, o qual se fez acompanhar por Zelão – parceiro em diversas composições – e do Kolombolo Diá Piratininga – conjunto musical formado por jovens músicos comprometidos com a preservação cultural do samba paulista. Na aprazível casinha de Francisca, Ideval apresentou peças de seu repertório extenso, dentre elas Narainã, Mentira e A jangada, o mar e o amor, além de um "pout-pourri" de alguns dos sambas-enredo campeões em carnavais pretéritos, com destaque para Literatura de Cordel (1972), Uma Certa Nega Fulô (1974), Almondegas de Ouro (1979) e Velha Academia (1984). Convido o leitor a escutar as canções linkadas acima; fazendo isso, poderão verificar o esmero latente das composições, cuja elaboração foi objeto de animado bate-papo em forma de "causos" por Ideval e Zelão durante a apresentação na Francisca.



Ao término do espetáculo, além da grande satisfação por tudo que vi e ouvi, não pude deixar de pensar na forma como artistas do quilate de Ideval e Zelão são reconhecidos pelo grande público paulistano (e, aqui, me incluo igualmente), ainda mais quando comparado com seus homólogos fluminenses, como Silas de Oliveira, Cartola e Martinho da Vila. Alguém poderá lembrar da célebre frase de Vinícius de Moraes, para quem São Paulo seria o túmulo do samba; essa, porém, é uma visão que simplifica a amplitude do conceito de samba, ao identificá-lo exclusivamente ao contexto carioca, marcado pelo samba-de-roda de improviso, com aspectos de crítica social em formato de crônica (impossível não pensar em Machado de Assis!). Esse, embora tenha se tornado no samba "padrão" brasileiro (produto de exportação), tem a companhia de outras vertentes, como a baiana e a paulista, essa última dotada de melodia, harmonia e cadência próprias, as quais se fazem visíveis mesmo em temáticas "cariocas" (vide Samba do Arnesto e Trem das Onze, de Adoniran Barbosa).

As composições de Ideval e Zelão (ou as "maldades", como eles as chamam), para além da cena sambista existente na Barra Funda (à qual ambos eram "filiados", berço da tradicional escola Camisa Verde e Branco), embora retire elementos do contexto da periferia da Zona Oeste paulistana, transcende-os, evocando liricamente imagens da natureza, temas eruditos e situações cotidianas, lembrando, em alguns momentos, canções de Dorival Caymmi e Paulinho da Viola. Uma tese: Esse resultado talvez ateste a capacidade do estilo musical "samba" de representar uma síntese do "ser" brasileiro, ao possibilitar uma identificação dentre diversos artistas por todo o país a uma certa sonoridade, retratada na evocação de terminadas imagens nos ouvintes, mesmo que a partir de melodias, cadências e contextos bastante diversos. (Sei que é uma tese cujos elementos doutrinários e empíricos de explicitação são (ainda) escassos; espero, porém, poder desenvolver melhor essa idéia em textos futuros neste espaço.)

O fato de termos dois grandes compositores em São Paulo que fazem parte desse grande movimento e não têm o devido e merecido destaque foi o último pensamento que me acompanhou antes adormecer na noite do espetáculo na Casa de Francisca.

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