quinta-feira, 29 de abril de 2010

Penso que já não há muitas razões ou, ao menos, muitas condições, decorridas tantas semanas, para uma retomada daquele projeto pretensamente genealógico. Decerto, esta retomada enfaria tanto a vocês, possíveis leitores, como a mim.

Além do mais, não faltaria muito a este projeto. Não muito, obviamente, se contarmos apenas com as minhas limitações de pensamento. Não muita coisa, mas coisa importante. Esta coisa, como a imaginação de vocês já deve ter insinuado, é a invenção e a invasão indiscreta do discurso psi.

Havia pensado em discutir alguns textos de psicologia ou psicanálise ou qualquer outro psi. Mas eles são tão óbveis! E o que eu teria a dizer deles, também: obvilíssimo.

Ou talvez não tão óbveis assim... Haha. Acudiu-me, neste exato momento, responder, ou desenvolver, ou tentar sofisticar uma pergunta que eu fizera em um texto anterior. A pergunta era sobre como punir alguém que quer se matar, já que a mais grave das penas estipuladas pelo Direito é, precisamente, a morte. O que talvez nos forçasse a ver, nos suicidas, antes de indivíduos carentes ou frágeis, os mais invejáveis burladores de um sistema de governamento muito refinado. Se a hipótese foucaultiana estiver correta e o sistema penal tiver como fim, não distinguir o que é legal do que é ilegal, mas contornar as ilegalidades de uma população, quem sabe a gente comece a surpreender, no suicídio, do ponto de vista político, um gesto espraiado de rebeldia, de inconformismo, de mais-vida.

Bem, as penas para os suicidas foram (e continuam sendo, sem dúvida) de ordem transcendental, sagrada. Mas o discurso aparentemente laico dos psi tornou o desejo de morrer uma doença, uma patologia; qualquer coisa indesejável, que merece cura. Patologia mundana, descrita com rigores mais ou menos científicos, com cura mundana, prescrita com rigores mais ou menos científicos.

Sagrado ou profano, o pastoreio é o mesmo.

Triste o mundo em que o desejo de morrer seja tomado como melancolia, depressão, amargura, rancor, fraqueza etc. Não é nada disso. Nem não é.

Mais uma vez, as palavras me tomam e alteram os rumos desta minha escrita. Para o próximo texto, pretendo fazer o que não fiz hoje: pensar o suicídio com Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze, Michel Foucault e companhia, retomando, como eles o fizeram, a ética grega.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Os limites da interpretação midiática

Antes de começar a crocitada de hoje, gostaria de me desculpar pelo atraso do tamanho de um elefante. Infelizmente, os corvos, assim como os focas e os seres humanos, precisam trabalhar pra burro, muitas vezes mais em benefício dos peixes grandes do que de si próprios. Mas chega de pedir desculpas. Vamos direto a um assunto que me interessa particularmente: como é possível ler e interpretar sentidos em um texto?

Na maioria das vezes, o ato de interpretar está relacionado quase automaticamente a textos literários de modo que toda a vasta produção neste campo parece murchar quando se trata de outras linguagens estéticas e encolhe ainda mais quando falamos de textos midiáticos. Não pretendo retomar a questão da inferioridade das novas mídias perante a uma suposta virtude hermética da literatura - uma discussão já vencida, na minha opinião. 

No entanto, todas as técnicas de análise tão bem sedimentadas no campo literário parecem se desfacelar diante de um caso midiático e enigmático como o da vinheta comemorativa aos 45 anos da Rede Globo. Aparentemente inofensiva e seguindo mais o menos o conceito visual da equipe de Hans Donner, a vinheta foi retirada do ar após a acusação do coordenador da campanha da presidenciável Dilma Rousseff segundo a qual o breve vídeo conteria em si uma mensagem embutida a favor do candidato José Serra. 


A base argumentativa da acusação se apóia em duas referências intertextuais bem sutis e, digamos, um tanto frágeis. A primeira é o número "45" exibido na vinheta, simultaneamente o tempo de vida do conglomerado jornalístico e o número do partido rival de Dilma Rousseff na corria presidencial. A segunda se encontra em um trecho final do texto pronunciado por diversas celebridades da emissora e consiste nas seguintes palavras:  "Todos queremos mais. Educação, saúde e, claro, amor e paz. Brasil? Muito mais". Supostamente, haveria aí uma referência velada ao slogan da campanha de Serra que diz "O Brasil pode mais".

A pergunta não poderia ser menos clara: pode-se falar com alguma segurança que houve aí a intenção de produzir referências ambíguas embutidas que pudessem influenciar a decisão de voto do eleitor? A comemoração dos 45 anos da Rede Globo é uma aleatoriedade sem relevância ou a emissora teria aproveitado a oportuna coincidência para levar a cabo mais uma de suas manobras insondáveis? 

Colocadas desta maneira, as perguntas favorecem sem dúvidas a ideia de que a equipe de campanha da candidata petista recorreu a uma superinterpretação quase paranóica como forma de tentar enfraquecer o adversário. No entanto, existe ainda uma mínima ressalva na caricaturização da intencio auctoris  malevolente e manipuladora dos produtores da vinheta: as ambiguidades apontadas pelos acusadores de fato se encontram no texto, independente de ter sido colocada ali propositalmente com o intuito de criar uma inclinação inconsciente ao candidato do PSDB. 

Por um lado, parece uma ingenuidade depositar tanta confiança em uma tal explicação conspiratória apoiada somente em coincidências de superfície (caso a Rede Globo tivesse sido fundada um ano depois, talvez uma coincidência matemática adiaria a vinheta em uns 150 anos ou mais). Além disso, o argumento remete vagamente a uma ideia de subliminaridade construída em conceitos de consciência/inconsciência tão firmes quanto tatuagens de chiclete. 

Por outro lado, quem é familiarizado com o ambiente midiático de publicidade, propaganda, televisão e cinema sabe bem que as peças e filmes produzidos são polvilhados, aqui e ali, de sutilezas desimportantes que nada mais são do que "recados cifrados". Qualquer envolvido com criação audio-visual sabe que nenhum elemento é casual e, se ele foi aprovado na produão final da peça, é porque certamente existe um bom motivo - seja ele qual for! - para ele estar ali.

Assim como no caso de poemas e romances, é praticamente impossível dar a palavra final sobre o que o "autor" quis dizer. Também seria leviano deliberar um significado definitivo e único decifrado por debaixo das entranhas do texto. Pretender ter uma visão acabada e completa sobre o significado é uma ousadia pouco recompensadora que, na maioria dos casos, apenas leva à segurança ilusório de um sentido estabilizado. A única coisa que nos resta é nos colocarmos diante desta esfínge televisiva e não perguntar "o que isso significa?", mas sim "como é que isso pode significar?".