Algumas horas depois do habitual, mas cheguei. Encontrei, nesta semana, aquela entrada de “suicídio” no Índice Doutrinal de uma “Bíblia”, que procurava há semanas. Desta vez, este índice tem nome de “Dicionário Prático”. Ei-la, na íntegra:
“Suicídio. É o ato voluntário de pôr fim à própria a vida, feito com plena posse das faculdades mentais. O suicídio é pecado mortal porque só Deus é o Senhor absoluto da vida e da morte. Portanto, dispôr alguém da própria vida, é usurpar um direito exclusivo de Deus. Não se consideram suicidas aquêles que se mataram num momento de loucura, ou que morreram em conseqüência de algum feito com intenção diversa, embora reconhecesse antes seu risco, como por ex. o salvar uma pessoa que se afoga ou està num incêndio pode levar o salvador à morte, sem que seja considerado suicida. A morte de Sansão não foi suicídio, mas sòmente morte indireta de si mesmo, i.e., Sanção quis diretamente matar seus inimigos e só indiretamente permitiu sua própria morte, uma vez que esta devia resultar da mesma ação, pela qual matava seus adversários. Cf. Princípio de duplo efeito.
Só Deus, que é o Senhor da vida e da morte, pode permitir ao homem dispôr de sua própria vida. O exemplo de um ou outro santo que se tenha matado para salvaguardar a castidade ou por outro motivo costuma se explicar ou por uma inspiração, pela qual Deus lhe autorizou a ação ou por ignorância inculpável.”
Isto é: conduzir condutas. Antes fosse coisa de alguns. Antes não fosse esta, hoje, a tarefa precípua das escolas, da publicidade, da ciência etc.
Enfim, ao Sanção. Sua narrativa é belíssima e vale a pena ser lida inteira. Compõe, também, o livro dos “Juízes”. Após Deus tê-lo ajudado a se safar, algumas vezes, das armadilhas de sua esposa, Dalila, incitada pelos filisteus, raparam as sete tranças da cabeleira de Sansão e ele perdeu sua força.
Prenderam-no, furaram-lhe os olhos, levaram-no a Gaza.
Quando já estavam todos alegres, solicitaram que ele viesse dançar. Antes desta humilhação última, contudo, Sanção pediu a Deus as forças para se vingar. Seus cabelos já estavam crescendo novamente. Apalpou as duas colunas do templo de Gaza e afastou-as, o templo desabou, matando cerca de três mil filisteus, matando mais filisteus do que matara em toda sua vida (não foram poucos) além de matar a si mesmo.
Mais uma vez, vejo aqui exemplo de uma morte que se prefere à humilhação, a uma morte indigna. Não sei se Sanção tinha em mente que sua vida pertencia exclusivamente a Deus. Não está explícito na narrativa. Sabe-se lá qual é a narrativa, mesma e primeira. Não interessa muito qual é esta narrativa. E não interessa fazer exegese dela, para saber o que Sanção tinha em mente. Novamente, a nós só interessa a superfície.
E nos interessa que o suicídio possa ser, mais mesmo que escapatória de humilhação, uma morte heróica. Morte por um princípio. Morte gloriosa. Quem sabe, um vovô do que veio a se chamar, entre nós, kamikaze.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
Você conhece a Costa Rica?
Descrita em alguns anúncios promocionais como “uma democracia que fala espanhol”, Costa Rica sofreu seu último golpe militar de Estado em 1917, abolindo seu exército em 1948 (atitude inédita à época) e transformando seus quartéis em museus. A singularidade costarriquenha na conturbada América Central é cultivada por seu povo, que vê nessa diferença o fundamento de sua identidade nacional. De fato, no ano que passou o país celebrou 120 anos de democracia, ainda que tal conta esqueça o período de ditadura do general Tinoco (1917-9) e a guerra civil em 1948.

A permanente necessidade de mão-de-obra levou a concessões referentes a salários e incentivos outros, tais como estabelecimento de períodos de férias e políticas de saúde. Nesse contexto, a violência institucional indiscriminada (comum em outros países da América Central) não se justificaria na Costa Rica, visto que um ambiente conflituoso comprometeria a própria viabilidade do país. A própria extinção do exército se deu após um contexto de ruptura institucional em 1948, graças ao receio dos agentes sociais da época do potencial desestabilizador da manutenção de forças armadas regulares; desde então, a segurança pública e manutenção da ordem é empreendida por uma Guarda Nacional. Essa especificidade trouxe ao menos dois resultados benéficos:
1) Liberou recursos a serem investidos em áreas prioritárias, como educação (94,9% da população é alfabetizada; na vizinha Honduras, 64,5%), e saúde (a expectativa de vida é de 77,58 anos; em Honduras, de 71,5; no Brasil, 71,99) hoje a Costa Rica gasta apenas 0,4% do PIB com a Guarda Nacional (é o 164º país no ranking da CIA; o Brasil é o 62º, com 2,6%).
2) Assegurou a legitimidade da Costa Rica como país-mediador de conflitos na América Central.
Os predicados democráticos foram elevados a novo nível após a declaração do então Presidente Luis Alberto Monge Álvarez, que, em 17.11.1983, declarou a neutralidade perpétua, ativa e não-armada da Costa Rica. A neutralidade é instituto jurídico pelo qual um Estado se abstém de tomar parte entre conflitos entre terceiros; o território de um Estado neutro é inviolável. Posteriormente transformada em lei, a declaração de neutralidade perpétua e ativa fundamentou o protagonismo costarriquenho na iniciativa de pacificação da América Central na década de 1980 – Grupo de Contadora (que renderia o Prêmio Nobel da Paz de 1987 ao então presidente Oscar Arias) –, estabelecimento do Ano Internacional da Paz pela ONU (em 1986) e, recentemente, gestões para o tratamento da crise institucional em Honduras, novamente sob os cuidados do Arias, eleito para novo mandato em 2006. Todos esses elementos justificam o apelido de “Suíça latino-americana”, o qual é visto com bons olhos pelos próprios costarriquenhos.
A preocupação com a proteção dos direitos humanos é outra característica geralmente associada à Costa Rica, cuja candidatura para sediar a Corte Interamericana de Direitos Humanos à época de seu estabelecimento encontrou pouca oposição. Essa Corte, aliás, é baseada na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como “Pacto de San Jose da Costa Rica”. A Corte IDH, aliás, é cenário para ao menos um episódio pitoresco que demonstra a maneira costarriquenha de tratar a temática dos direitos humanos. Em 1981, nos primórdios do sistema de proteção regional, ansiosa pelo seu efetivo funcionamento após cerca de 2 anos sem que nenhuma propositura ingressasse no sistema (lembrando que diversos países da América Latina eram governados por ditaduras no começo da década de 1980), o Estado costarriquenho resolveu ingressar com uma ação contra si mesmo (Assunto Viviana Gallardo e outras), franqueando à Corte IDH decidir se suas ações constituíam violações de direitos humanos consagrados no Pacto de San Jose; embora reconhecesse a boa-fé costarriquenha, a Corte julgou o pedido improcedente.
Para não dizer que falei apenas de flores, Costa Rica muitas vezes é tachada de protetorado norte-americano, devido aos grandes investimentos desse país na democracia centro-americana e nas relações bastante próximas entre San Jose e Washington. Os EUA viam na Costa Rica um paradigma a ser exportado para os países vizinhos, uma vitrine de prosperidade a concorrer com os regimes de inspiração socialista que grassavam na região. A influência norte-americana se deu, ainda, na resistência costarriquenha em aprofundar processos de integração econômicas na América Central, privilegiando sua inserção no mercado global (tal como propugnado pelo Partido Republicano dos EUA). Iniciativas como o estabelecimento de estruturas de integração regional (SICA – Sistema da Integração Centro-Americana) e o amplo debate (decorrente de viva oposição por setores da sociedade) antes do estabelecimento de área de livre comércio mais amplo (no caso, a DR-CAFTA – Dominican Republic-Central American Free Trade Agreement, ratificada pela Costa Rica após aprovação em plebiscito realizado em 2007) demonstram a mitigação influência norte-americana sobre a nação centro-americana.
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Concluo minhas breves considerações com a estrofe de uma canção composta pelo poeta José Basileo Acuña Zeledón, um instantâneo do "ser" costarriquenho:
Que este Valle Central en que vivimossea una copa de Paz abierta al cielo,que contenga y difunda a todo el mundola Paz que anhela y vive Costa Rica,la Paz Eterna por ser Paz del almahecha a imagen de Dios para servirley servir a los seres que ha creado.
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010
Orgulho e preconceito
Quando eu era um corvo filhote ainda, admirava o hábito dos adultos de ler jornal. Para mim, ler jornal era algo tipicamente adulto. Criança brinca, adulto lê jornal. Um jornal nunca poderia ser um objeto infantil: um pedaço de papel cinzento e áspero, em formato inexplicávelmente grande que tampa toda a cara da pessoa quando aberto. Também não tem figuras coloridas (não, pelo menos, como nos "livros infantis") e divertidas, por vez ou outra uma foto de alguém importante que eu não sabia quem era ou então um gráfico cheio de numerozinhos. Então eu, no meu imaginário de corvo de poucas penas e muita ingenuidade, pensava: "escrever no jornal deve ser uma coisa muito séria".
Hoje, a mesma pergunta volta à minha mente, mas com uma penugem um pouco diferente: "o que é preciso para ser jornalista?". Se eu for tirar minhas próprias conclusões a partir do que vejo no produto dos jornalistas - obviamente, os jornais - provavelmente vou chegar a uma única resposta: nada. Queria ressaltar que minha pergunta não chega ao ponto de indagar sobre os dotes de um bom jornalista. Apenas me pergunto sobre os requisitos mínimos para se tornar um jornalista, um ser humano cuja voz soa mais alto e mais notável na esfera pública do que a voz de outros seres humanos. Tudo bem, só com essa breve observação já descobri que - por sorte ou azar - nunca poderei ser um jornalista: sou um corvo, e não um ser humano e, portanto, não tenho voz. Mas, deixando esse fato de lado, acho que não preciso de mais nada. Não preciso de conhecimentos técnicos, não preciso de formação humanística, não preciso de capacidade de argumentação e análise e nem mesmo de um estilo bem elaborado. Pelo menos, é isso que posso concluir depois de ler o texto "O caso Maitê Proença", escrita por um colunista da Folha Online que atende pelo nome de João Pereira Coutinho.
Resumindo em poucas palavras, o texto nada mais é do que um comentário sobre o episódio em que Maitê Proença faz piadinhas de mau-gosto discriminando os portugueses em uma matéria feita para o seu programa no canal GNT. Os portugueses travaram conhecimento do fato, se sentiram ofendidos e Maitê foi obrigada a se retratar em seu programa. Até aqui, nada de surpreendente: a atriz cometeu gafes preconceituosas que poderiam ser facilmente evitadas (pelo seu próprio bom-senso ou pelo bom senso do diretor do programa) e teve de pedir desculpas formais por isso. O que realmente surpreende é o fato de a coluna tentar defender as discriminações lúdicas de Maitê usando para isso argumentos bem pouco razoáveis. E, como eu sempre gosto de fazer, vamos direto ao ponto da discórdia: o texto.



Para coroar este pensamento algo “ontologizante” de que as piadas de português são mesmo “a realidade”, o colunista chega a abrir mão de qualquer espécie de argumentação lógica e afirma que basta olhar e caminhar por Lisboa para atestar a veracidade das tais piadas. Mais uma vez, o laço fiduciário entre redator e leitor enforca este último ao declarar uma suposta obviedade, como se bastasse um ser humano poder caminhar e olhar para dar razão ao ponto-de-vista do colunista. Do outro lado da moeda, o rompimento com a perspectiva oferecida age também como uma ameaça implícita de depreciação: se algum leitor discordar dos preconceitos fantasiados de fatos, então a ele será imediatamente relegada a inferioridade daqueles que não são capazes de ver coisas “tão óbvias”.

Ao contrário dos animais silvestres, da flora marinha e dos corvos-críticos, o preconceito e a discriminação nunca entrarão em extinção e talvez eu seja um pouco pessimista em dizer que é vão lutar contra. No entanto, se não podemos erradicar esse parasita invisível que se multiplica utilizando como vetor as mentes humanas, temos pelo menos o dever de evitar que ele se utilize de jornais e revistas como hábitat natural. Afinal, um jornalista que tem o poder de publicar em um meio de massa de tão vasto alcance e, ainda além, recebe dinheiro para isso não tem o direito de pulverizar um tal preconceito irracional e, portanto, não merece outro nome senão o de parasita. Imagino que algum jornalista possa se sentir ofendido, tomar as dores de João Pereira Coutinho e tentar depredar também minha credibilidade, criticando a qualidade do meu texto e denunciando minhas comparações exageradas, meu tom excessivamente coloquial e meu preconceito contra jornalistas. A propósito, a única coisa que fiz foi copiar exatamente as características daquilo que me é dado a ler pelo jornalismo.
João Pereira Coutinho: que sua praga não se espalhe, senão iremos detetizar você e os preconceitos infectados em sua coluna.
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