segunda-feira, 5 de abril de 2010

Mídia devassa

 agradecimento especial: R.C.L.

No texto sobre os aumentativos da campanha do cervejão da Nova Schin, comentei o fato de jornais e cervejas serem vendidos com os apelos publicitários idênticos. Infelizmente, a proximidade entre produtos alcólicos fermentados e produtos midiáticos parece ser maior do que o comentário despretensioso permitia suspeitar. A cerveja que deixou tudo muito mais claro dessa vez é a Devassa, cuja campanha de lançamento deflagrou mais uma polêmica publicitária estrondosa e absolutamente desproporcional. Antes de abordar o ponto central da discussão, gostaria de dar alguma palavrinha sobre a campanha em si mesma. Como todo lançamento de um novo produto ou serviço, a campanha precisa ter um efeito impactante em um maior número de pessoas possível (isto é, dentro do púlibco-alvo delimitado). Quando se trata de um segmento de mercado estável e já dominado por grandes marcas, o desafio torna-se ainda mais árduo: além do esforço em se fazer conhecida, a marca neófita precisa desfazer os laços de credibilidade já estabelecidos entre clientes e marcas.



Ao meu ver, essa parece ter sido a pedra angular de toda a execução da campanha, a começar pela escolha de Paris Hilton como protagonista. A socialite americana não lembra quase nada uma mulher brasileira, nem mesmo uma cerveja e muito menos uma cerveja brasileira. Se, como por um passe de mágica, uma cerveja pudesse ser personificada em uma mulher, certamente ela não se metamorfosearia em Paris Hilton. Eu até arriscaria dizer que este é somente meu ponto-de-vista particular e só diz respeito às minhas preferências de perfis femininos se minha opinião não tivesse sido ratificada por outras pessoas, o que me faz desconfiar seriamente que muitas mulheres brasileiras talvez também não se identifiquem com a imagem da loirinha de pele clara. Embora a escolha capciosa desempenhe um papel importante na estratégia da campanha, ela não é o elemento único e nem central da polêmica em torno do lançamento da Devassa.


O comercial suspenso por medida do CONAR (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação publicitária) pode se resumir em uma relação espelhada de voyeurismo-exibicionismo envolvendo Paris Hilton, um homem que a fotografa e, logo depois, diversos transeuntes. Aparentemente inofensivo, o filme foi suspenso por trazer como centro da mensagem um apelo à sensualidade, o que causou reações revoltosas perante a "hipocrisia" e o "falso moralismo brasileiro" que podem ser exemplarmente ilustradas pelo artigo de Sérgio Augusto publicado no Observatório da Imprensa e intitulado Tempestade em lata de cerveja. Embora o tom das críticas tenha sido geralmente bem mais chulo, considero o texto de Sérgio Augusto um bom sumário daquilo que já se disse sobre a campanha em questão.

Uma boa parte das críticas retomou o fato de que, em outros filmes publicitários, as formas de apelo à sensualidade são bem mais vulgares do que aquelas empregadas no filme da Devassa. Embora pareça razoável à primeira vista, a argumentação deixa transparecer uma ingenuidade incômoda. Em primeiro lugar, cai-se no erro quase infantil de comparar a publicidade nacional com a internacional. Qualquer um que já tenha visto um punhado de comerciais estrangeriro percebe que as regras tácitas de criação publicitária são completamente diferentes: os limites do humor, os exageros do erotismo, as extrapolações do non-sense e os padrões visuais plásticos deixam bem claro que, se os gêneros literários variam de uma cultura para outra, o mesmo também vale para a publicidade.

Em segundo lugar, o julgamento do grau de indecência de um ou outro filme se limita àquilo que é efetivamente mostrado na tela, talvez ignorando o fato de que existem numerosas maneiras de criar efeitos de sensualidade (assim como suspense, medo ou divertimento) por meio de alusões e referências indiretas. Não faltam filmes sobre a face da Terra em que cenas de forte apelo erótico são criadas sem exibir nenhuma parte do corpo que já não seja visível sob a proteção moral das roupas.

Em terceiro lugar, esse ponto-de-vista parece ignorar o fato de que os responsáveis pela criação e veiculação de uma campanha conhecem claramente as determinações impostas pelo CONAR. Mesmo cientes da legislação brasileira que proíbe que o apelo sensual assuma lugar central em comerciais de alcólicos, agência publicitária e cliente decidiram voluntariamente lançar uma campanha mais ousada, correr o risco de infringir a proibição e, com isso, criar o burburinho que atrairia as atenções para si. Seria no mínimo ingênuo acreditar que a empresa está sendo alvo de um "boicote hipermoralista e recalcado" que só dá atenção às imoralidades inofensivas da publicidade e faz vistas grossas a outros escândalos veiculados em filmes, músicas e - curiosamente, vejam só! - pelo jornalismo.

No caso do artigo de Sério Augusto que mencionei aqui, o autor incorre no erro ainda mais grosseiro de recorrer ao argumento de que Paris Hilton já explora mesmo sua sensualidade em público e que, por isso, não haveria nenhum problema de fazê-lo em um comercial. Para completar a linha de raciocínio sólida como um castelo de paçoca, o articulista cita uma antropóloga americana e esboça uma genealogia das significações da loura. As tentativas de defender o direito da marca de veicular Paris Hilton se esfregando em uma latinha de cerveja recorrem a toda sorte de motivos que, no entanto, parecem ignorar a estratégia meticulosa do anunciante de veicular o seu próprio comercial censurado como modo de ampliar ainda mais o seu efeito perante o público.


Aqueles que tem uma memória publicitária um pouco mais acurada podem se lembrar rapidamente da campanha de lançamento da Tesourinha do Mickey em que crianças repetiam irritantemente o bordão "eu tenho, você não tem!". Na época, o comercial foi também suspenso pelo mesmo órgão de regulamentação por desrespeitar o sentimento de auto-estima da criança que, por não poder possuir o produto anunciado, era zombada e excluída pelos seus colegas. A reação da empresa diante da proibição se valeu da mesma estratégia utilizada pela Devassa nos dias de hoje: o mesmo comercial foi levado ao ar com o polêmico bordão substituído por barulhinhos nasais e grunhidos que replicavam o ritmo da fala do bordão original. Resultado: as vendas da Tesourinha do Mickey continuaram a crescer indiferentemente à proibição.


A bem da verdade, não me interessa muito se o roteiro do comercial da Devassa ofende os valores morais do público ou não. Considerando sempre que as homogeneidades da massa só existem nos papéis dos planos de mídia e estatísticas de opinião, é bem provável que uma boa parcela da população de fato tenha se sentido ofendida com o filme publicitário, enquanto outra deve ter adorado ver a modelo em cenas exibicionistas e, por fim, uma outra parcela deve ter permanecido indiferente ao assunto. Estes são apenas pontos-de-vistas diferentes e só dizem respeito aos valores morais de cada um. O que realmente me surpreendeu no episódio foi o fato de uma maioria considerável de espectadores condenarem a decisão do CONAR e defenderem indignadamente o "direito de liberdade de expressão" da empresa anunciante, como se ela tivesse prestado um serviço indispensável ao público.