quinta-feira, 29 de abril de 2010

Penso que já não há muitas razões ou, ao menos, muitas condições, decorridas tantas semanas, para uma retomada daquele projeto pretensamente genealógico. Decerto, esta retomada enfaria tanto a vocês, possíveis leitores, como a mim.

Além do mais, não faltaria muito a este projeto. Não muito, obviamente, se contarmos apenas com as minhas limitações de pensamento. Não muita coisa, mas coisa importante. Esta coisa, como a imaginação de vocês já deve ter insinuado, é a invenção e a invasão indiscreta do discurso psi.

Havia pensado em discutir alguns textos de psicologia ou psicanálise ou qualquer outro psi. Mas eles são tão óbveis! E o que eu teria a dizer deles, também: obvilíssimo.

Ou talvez não tão óbveis assim... Haha. Acudiu-me, neste exato momento, responder, ou desenvolver, ou tentar sofisticar uma pergunta que eu fizera em um texto anterior. A pergunta era sobre como punir alguém que quer se matar, já que a mais grave das penas estipuladas pelo Direito é, precisamente, a morte. O que talvez nos forçasse a ver, nos suicidas, antes de indivíduos carentes ou frágeis, os mais invejáveis burladores de um sistema de governamento muito refinado. Se a hipótese foucaultiana estiver correta e o sistema penal tiver como fim, não distinguir o que é legal do que é ilegal, mas contornar as ilegalidades de uma população, quem sabe a gente comece a surpreender, no suicídio, do ponto de vista político, um gesto espraiado de rebeldia, de inconformismo, de mais-vida.

Bem, as penas para os suicidas foram (e continuam sendo, sem dúvida) de ordem transcendental, sagrada. Mas o discurso aparentemente laico dos psi tornou o desejo de morrer uma doença, uma patologia; qualquer coisa indesejável, que merece cura. Patologia mundana, descrita com rigores mais ou menos científicos, com cura mundana, prescrita com rigores mais ou menos científicos.

Sagrado ou profano, o pastoreio é o mesmo.

Triste o mundo em que o desejo de morrer seja tomado como melancolia, depressão, amargura, rancor, fraqueza etc. Não é nada disso. Nem não é.

Mais uma vez, as palavras me tomam e alteram os rumos desta minha escrita. Para o próximo texto, pretendo fazer o que não fiz hoje: pensar o suicídio com Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze, Michel Foucault e companhia, retomando, como eles o fizeram, a ética grega.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Os limites da interpretação midiática

Antes de começar a crocitada de hoje, gostaria de me desculpar pelo atraso do tamanho de um elefante. Infelizmente, os corvos, assim como os focas e os seres humanos, precisam trabalhar pra burro, muitas vezes mais em benefício dos peixes grandes do que de si próprios. Mas chega de pedir desculpas. Vamos direto a um assunto que me interessa particularmente: como é possível ler e interpretar sentidos em um texto?

Na maioria das vezes, o ato de interpretar está relacionado quase automaticamente a textos literários de modo que toda a vasta produção neste campo parece murchar quando se trata de outras linguagens estéticas e encolhe ainda mais quando falamos de textos midiáticos. Não pretendo retomar a questão da inferioridade das novas mídias perante a uma suposta virtude hermética da literatura - uma discussão já vencida, na minha opinião. 

No entanto, todas as técnicas de análise tão bem sedimentadas no campo literário parecem se desfacelar diante de um caso midiático e enigmático como o da vinheta comemorativa aos 45 anos da Rede Globo. Aparentemente inofensiva e seguindo mais o menos o conceito visual da equipe de Hans Donner, a vinheta foi retirada do ar após a acusação do coordenador da campanha da presidenciável Dilma Rousseff segundo a qual o breve vídeo conteria em si uma mensagem embutida a favor do candidato José Serra. 


A base argumentativa da acusação se apóia em duas referências intertextuais bem sutis e, digamos, um tanto frágeis. A primeira é o número "45" exibido na vinheta, simultaneamente o tempo de vida do conglomerado jornalístico e o número do partido rival de Dilma Rousseff na corria presidencial. A segunda se encontra em um trecho final do texto pronunciado por diversas celebridades da emissora e consiste nas seguintes palavras:  "Todos queremos mais. Educação, saúde e, claro, amor e paz. Brasil? Muito mais". Supostamente, haveria aí uma referência velada ao slogan da campanha de Serra que diz "O Brasil pode mais".

A pergunta não poderia ser menos clara: pode-se falar com alguma segurança que houve aí a intenção de produzir referências ambíguas embutidas que pudessem influenciar a decisão de voto do eleitor? A comemoração dos 45 anos da Rede Globo é uma aleatoriedade sem relevância ou a emissora teria aproveitado a oportuna coincidência para levar a cabo mais uma de suas manobras insondáveis? 

Colocadas desta maneira, as perguntas favorecem sem dúvidas a ideia de que a equipe de campanha da candidata petista recorreu a uma superinterpretação quase paranóica como forma de tentar enfraquecer o adversário. No entanto, existe ainda uma mínima ressalva na caricaturização da intencio auctoris  malevolente e manipuladora dos produtores da vinheta: as ambiguidades apontadas pelos acusadores de fato se encontram no texto, independente de ter sido colocada ali propositalmente com o intuito de criar uma inclinação inconsciente ao candidato do PSDB. 

Por um lado, parece uma ingenuidade depositar tanta confiança em uma tal explicação conspiratória apoiada somente em coincidências de superfície (caso a Rede Globo tivesse sido fundada um ano depois, talvez uma coincidência matemática adiaria a vinheta em uns 150 anos ou mais). Além disso, o argumento remete vagamente a uma ideia de subliminaridade construída em conceitos de consciência/inconsciência tão firmes quanto tatuagens de chiclete. 

Por outro lado, quem é familiarizado com o ambiente midiático de publicidade, propaganda, televisão e cinema sabe bem que as peças e filmes produzidos são polvilhados, aqui e ali, de sutilezas desimportantes que nada mais são do que "recados cifrados". Qualquer envolvido com criação audio-visual sabe que nenhum elemento é casual e, se ele foi aprovado na produão final da peça, é porque certamente existe um bom motivo - seja ele qual for! - para ele estar ali.

Assim como no caso de poemas e romances, é praticamente impossível dar a palavra final sobre o que o "autor" quis dizer. Também seria leviano deliberar um significado definitivo e único decifrado por debaixo das entranhas do texto. Pretender ter uma visão acabada e completa sobre o significado é uma ousadia pouco recompensadora que, na maioria dos casos, apenas leva à segurança ilusório de um sentido estabilizado. A única coisa que nos resta é nos colocarmos diante desta esfínge televisiva e não perguntar "o que isso significa?", mas sim "como é que isso pode significar?".


quinta-feira, 15 de abril de 2010

Em lugar do texto insuportável que eu estava escrevendo, com os devidos pedidos de perdão pela minha ausência nestas duas últimas semanas, com algumas explicações sobre o possível movimento do blog etc., deixo duas palavras:

suicídio: matar-ci.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Mídia devassa

 agradecimento especial: R.C.L.

No texto sobre os aumentativos da campanha do cervejão da Nova Schin, comentei o fato de jornais e cervejas serem vendidos com os apelos publicitários idênticos. Infelizmente, a proximidade entre produtos alcólicos fermentados e produtos midiáticos parece ser maior do que o comentário despretensioso permitia suspeitar. A cerveja que deixou tudo muito mais claro dessa vez é a Devassa, cuja campanha de lançamento deflagrou mais uma polêmica publicitária estrondosa e absolutamente desproporcional. Antes de abordar o ponto central da discussão, gostaria de dar alguma palavrinha sobre a campanha em si mesma. Como todo lançamento de um novo produto ou serviço, a campanha precisa ter um efeito impactante em um maior número de pessoas possível (isto é, dentro do púlibco-alvo delimitado). Quando se trata de um segmento de mercado estável e já dominado por grandes marcas, o desafio torna-se ainda mais árduo: além do esforço em se fazer conhecida, a marca neófita precisa desfazer os laços de credibilidade já estabelecidos entre clientes e marcas.



Ao meu ver, essa parece ter sido a pedra angular de toda a execução da campanha, a começar pela escolha de Paris Hilton como protagonista. A socialite americana não lembra quase nada uma mulher brasileira, nem mesmo uma cerveja e muito menos uma cerveja brasileira. Se, como por um passe de mágica, uma cerveja pudesse ser personificada em uma mulher, certamente ela não se metamorfosearia em Paris Hilton. Eu até arriscaria dizer que este é somente meu ponto-de-vista particular e só diz respeito às minhas preferências de perfis femininos se minha opinião não tivesse sido ratificada por outras pessoas, o que me faz desconfiar seriamente que muitas mulheres brasileiras talvez também não se identifiquem com a imagem da loirinha de pele clara. Embora a escolha capciosa desempenhe um papel importante na estratégia da campanha, ela não é o elemento único e nem central da polêmica em torno do lançamento da Devassa.


O comercial suspenso por medida do CONAR (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação publicitária) pode se resumir em uma relação espelhada de voyeurismo-exibicionismo envolvendo Paris Hilton, um homem que a fotografa e, logo depois, diversos transeuntes. Aparentemente inofensivo, o filme foi suspenso por trazer como centro da mensagem um apelo à sensualidade, o que causou reações revoltosas perante a "hipocrisia" e o "falso moralismo brasileiro" que podem ser exemplarmente ilustradas pelo artigo de Sérgio Augusto publicado no Observatório da Imprensa e intitulado Tempestade em lata de cerveja. Embora o tom das críticas tenha sido geralmente bem mais chulo, considero o texto de Sérgio Augusto um bom sumário daquilo que já se disse sobre a campanha em questão.

Uma boa parte das críticas retomou o fato de que, em outros filmes publicitários, as formas de apelo à sensualidade são bem mais vulgares do que aquelas empregadas no filme da Devassa. Embora pareça razoável à primeira vista, a argumentação deixa transparecer uma ingenuidade incômoda. Em primeiro lugar, cai-se no erro quase infantil de comparar a publicidade nacional com a internacional. Qualquer um que já tenha visto um punhado de comerciais estrangeriro percebe que as regras tácitas de criação publicitária são completamente diferentes: os limites do humor, os exageros do erotismo, as extrapolações do non-sense e os padrões visuais plásticos deixam bem claro que, se os gêneros literários variam de uma cultura para outra, o mesmo também vale para a publicidade.

Em segundo lugar, o julgamento do grau de indecência de um ou outro filme se limita àquilo que é efetivamente mostrado na tela, talvez ignorando o fato de que existem numerosas maneiras de criar efeitos de sensualidade (assim como suspense, medo ou divertimento) por meio de alusões e referências indiretas. Não faltam filmes sobre a face da Terra em que cenas de forte apelo erótico são criadas sem exibir nenhuma parte do corpo que já não seja visível sob a proteção moral das roupas.

Em terceiro lugar, esse ponto-de-vista parece ignorar o fato de que os responsáveis pela criação e veiculação de uma campanha conhecem claramente as determinações impostas pelo CONAR. Mesmo cientes da legislação brasileira que proíbe que o apelo sensual assuma lugar central em comerciais de alcólicos, agência publicitária e cliente decidiram voluntariamente lançar uma campanha mais ousada, correr o risco de infringir a proibição e, com isso, criar o burburinho que atrairia as atenções para si. Seria no mínimo ingênuo acreditar que a empresa está sendo alvo de um "boicote hipermoralista e recalcado" que só dá atenção às imoralidades inofensivas da publicidade e faz vistas grossas a outros escândalos veiculados em filmes, músicas e - curiosamente, vejam só! - pelo jornalismo.

No caso do artigo de Sério Augusto que mencionei aqui, o autor incorre no erro ainda mais grosseiro de recorrer ao argumento de que Paris Hilton já explora mesmo sua sensualidade em público e que, por isso, não haveria nenhum problema de fazê-lo em um comercial. Para completar a linha de raciocínio sólida como um castelo de paçoca, o articulista cita uma antropóloga americana e esboça uma genealogia das significações da loura. As tentativas de defender o direito da marca de veicular Paris Hilton se esfregando em uma latinha de cerveja recorrem a toda sorte de motivos que, no entanto, parecem ignorar a estratégia meticulosa do anunciante de veicular o seu próprio comercial censurado como modo de ampliar ainda mais o seu efeito perante o público.


Aqueles que tem uma memória publicitária um pouco mais acurada podem se lembrar rapidamente da campanha de lançamento da Tesourinha do Mickey em que crianças repetiam irritantemente o bordão "eu tenho, você não tem!". Na época, o comercial foi também suspenso pelo mesmo órgão de regulamentação por desrespeitar o sentimento de auto-estima da criança que, por não poder possuir o produto anunciado, era zombada e excluída pelos seus colegas. A reação da empresa diante da proibição se valeu da mesma estratégia utilizada pela Devassa nos dias de hoje: o mesmo comercial foi levado ao ar com o polêmico bordão substituído por barulhinhos nasais e grunhidos que replicavam o ritmo da fala do bordão original. Resultado: as vendas da Tesourinha do Mickey continuaram a crescer indiferentemente à proibição.


A bem da verdade, não me interessa muito se o roteiro do comercial da Devassa ofende os valores morais do público ou não. Considerando sempre que as homogeneidades da massa só existem nos papéis dos planos de mídia e estatísticas de opinião, é bem provável que uma boa parcela da população de fato tenha se sentido ofendida com o filme publicitário, enquanto outra deve ter adorado ver a modelo em cenas exibicionistas e, por fim, uma outra parcela deve ter permanecido indiferente ao assunto. Estes são apenas pontos-de-vistas diferentes e só dizem respeito aos valores morais de cada um. O que realmente me surpreendeu no episódio foi o fato de uma maioria considerável de espectadores condenarem a decisão do CONAR e defenderem indignadamente o "direito de liberdade de expressão" da empresa anunciante, como se ela tivesse prestado um serviço indispensável ao público.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Esporte nacional e jornal espetacular

Não, eu não me confundi na hora de escrever o título de hoje. A inversão poderia ser apenas um anagrama engraçadinho de dois programas de uma grande emissora de televisão aberta e seria bem melhor se assim fosse. Infelizmente, o trocadilho me parece na verdade uma fórmula telegraficamente condensada do que vemos na postura do jornalismo na cobertura de julgamentos polêmicos como o do casal Nardoni. Essa iluminação me veio quando assistia um jogo de futebol televisionado pela tal emissora e notei que os narradores insistem em preencher toda lacuna de silêncio com comentários dispensáveis e, muitas vezes, com pouco nexo. 

A cada toque na bola, os narradores abrem a boca para descrever qual pé tocou na bola, qual jogador fez o toque, qual recebeu, em que região do campo que foi, se tinha algum jogador adversário marcando o lance e se o passe foi bom. Daí, eles passam a relatar o número de passes feitos por cada time até o momento, quantos passes o time dá em média por jogo e sempre partem para estatísticas e tabus retirados de alguma fonte eletrônica. Quando o lance é de falta, o falatório pode se multiplicar astronomicamente: os comentaristas desfiam dezenas de suposições, julgam a interpretação do juiz, analisam o seu ângulo de acordo com sua posição no campo, interpretam a intenção do jogador faltoso ou então a tentativa de simulação do jogador rolando no chão. No caso da cobertura do julgamento dos Nardoni, exatamente a mesma tagarelação vai reproduzindo o desenrolar dos fatos.

Como urubus sedentos pela carne de um cadáver moribundo, os jornalistas se empoleiram à espera de uma novidade qualquer, por menor que seja, para se alimentar dela e transformá-la, assim como o faz o narrador esportivo, em um lance de jogo a mais, passível de dezenas de comentários, na maioria das vezes supérfluos. E, quando isso não basta para encher as pautas, é só recorrer ao tira-teima para observar tudo de uma outra câmera e multiplicar tudo aquilo que já foi dito, mas de outro ângulo. 

A bem da verdade, não sou contra este hábito dos narradores esportivos. Muito pelo contrário, compreendo que ele tenha a função de criar efeitos de realidade e de dinamismo na transmissão de qualquer esporte (creio que só o xadrez e o poker dispensem esse tipo de recurso). Quando o narrador descreve os movimentos dos jogadores e da bola, ele reproduz as cenas sonoramente na imaginação do expectador e o envolve nos movimentos do jogo, instala-os dentro do próprio "momento imediato" do jogo  e a todo momento dá a impressão de que algo pode acontecer. Os jornalistas também não pretendem outro efeito quando publicam compulsivamente matérias sobre um mesmo evento (neste caso, o polêmico julgamento), ainda que as "novidades" veiculadas não alterem substancialmente o desenvolver dos fatos tomado em sua totalidade. 

No entanto, existe uma diferença fundamental que inocenta os narradores esportivos e condena os jornalistas. Ao contrário do esporte, o jornalismo não se destina ao entretenimento - ou pelo menos não deveria. Narradores e comentaristas podem dizer superfluidades o quanto quiserem, até que isso lhes manche a reputação entre seus colegas de trabalho. O jornalista, por sua vez, não tem o direito de usar o alcance de sua voz para falar qualquer coisa. O narrador não precisa necessariamente acrescentar algo substancial ao lance do jogo que está narrando - seu objetivo principal é envolver o torcedor e ele terá sido bem-sucedido se conseguir despertar neste toda a sorte de emoções que uma disputa esportiva pode causar - raiva, medo, alegria e ansiedade. Do outro lado, um jornalista que busca estes mesmos efeitos ou não deve ser levado a sério ou está contrariando abertamente os juramentos tão difundidos de compromisso com a verdade e com a confiabilidade da informação. Gostaria de lembrar ainda que, na maioria dos casos, os textos de coberturas como essas (que também incluem acidentes áereos, sequestros ou ataques armados de qualquer espécie) não trazem nada substancial que o leitor possa guardar para si quando a poeira dos acontecimentos já estiver baixado. 

Estas tentativas de mergulhar o público em uma realidade recriada não é nenhuma novidade, ao contrário ela se manifesta tanto na evolução gráfica dos video-games quanto nas descrições minuciosas na literatura. E também, não nos esqueçamos, nas locuções de futebol. O que parece realmente intrigante é que o jornalismo utilize impunemente os mesmos recursos da transmissão esportiva, dos videogames e da literatura.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Outro momento importante, no Cristianismo, me parece, para os discursos sobre o suicídio, foi o "O evangelho segundo o Espiritismo", de Allan Kardec. Muitos séculos depois de Dante Alighieri, em 1863, o famoso evangelho, basilar para o entendimento do espiritismo especialmente kadecista, é publicado.
Merece muito mais atenção do que daremos hoje. Por isso é que, certamente, voltaremos a ele em outras semanas.
Por ora, vamos ficar com uma prece apenas:
"72 – Prece – Sabemos qual a sorte que espera os que violam a vossa lei, Senhor, para abreviar voluntariamente os seus dias! Mas sabemos também que a vossa misericórdia é infinita. Estendei-a sobre o Espírito de Fulano, Senhor! E possam as nossas preces e a vossa comiseração abrandar as amarguras dos sofrimentos que suporta, por não ter tido a coragem de esperar o fim das suas provas! Bons Espíritos, cuja missão é assistir os infelizes, tomai-o sob a vossa proteção; inspirai-lhe o remorso pela falta cometida, e que a vossa assistência lhe dê a força de enfrentar com mais resignação às novas provas que terá de sofrer, para repará-la. Afastai dele os maus Espíritos, que poderiam levá-lo novamente ao mal, prolongando os seus sofrimentos, ao fazê-lo perder o fruto das novas experiências. E a ti, cuja desgraça provoca as nossas preces, que possa a nossa comiseração adoçar a tua amargura, fazendo nascer em teu coração a esperança de um futuro melhor!. Esse futuro está nas vossas próprias mãos: confia na bondade de Deus, que espera sempre por todos os que se arrependem, e só é severo para os de coração empedernido." (tradução de José Herculano Pires)
Fragmentariamente, pois que não há tempo para a costura hoje:
Aos suicidas, pede-se a misericórdia divina. Como se os suicidas quisessem a misericórdia de alguém. Como, aliás, se a misericórdia não fosse lamentável. E é.
Suicidas são considerados infelizes. E são?
Suicidas são considerados covardes por não terem esperado até o fim dos dias. A isto, teremos demais de voltar. Aqui, vejo uma inversão completa à concepção grega de coragem. Mas, enfim, será que é mesmo coragem esperar até o fim dos dias? Será que é mesmo falta de coragem enfrentar a floresta dantesca? Sei não...
Aos suicidas, remorso. Credo! Dispenso. Está em causa, aqui, a má consciência. Só faz mal.
Por fim, esperança no futuro. O Cristianismo e o futuro redentor. O Cristianismo não sozinho nem puro. Pelo contrário, distorcido, retorcido, reinventado, apropriado, despropriado. O Cristianismo e o espírito do que chamamos sem cuidado capitalismo. O Cristianismo entranhado, incutido nos não-cristãos, inclusive. O Cristianismo e o pavor, e os apavorados. O Cristianismo e a má consciência. O Cristianismo e o Paulo Freire. O Cristianismo e a moral. O Cristianismo e o eu. O Cristianismo e a vida indigna, indigníssima.
Antes do tchau: a imensa maioria das condutas pôde ser conduzida pelas penalidades terrenas, pelos castigos terrenos, pelo julgamento moral terreno. Mas como julgar, penalizar, castigar terrenamente os suicidas? Esses desviados, livres e escapos...

quarta-feira, 17 de março de 2010

Que Shakespeare me perdoe a apropriação paupérrima, mas há algo de podre, no reino da Dinamarca.
Bem, seja como for, e agora é ninguém menos que Dante Alighieri que haverá de me perdoar, visitemos nossa floresta, finalmente.
"Visitemos" talvez seja pretensão em demasia. Quem sabe, dar uma voltinha. Não bastassem as dificuldades muitas de atravessarmos tal floresta, ingrimíssima, o tempo não está a ajudar.
No sétimo círculo do Inferno, estão os violentos. O sétimo círculo é repartido em três vales. O primeiro é reservado aos violentos contra a natureza, as pessoas e seus bens. O segundo, aos violentos contra si mesmos, mais precisamente, no italiano arcaico do século XIV, aquele que "non è giusto". Portanto, ainda não se trata de suicídio nem de suicidas. Aliás, até agora, não existe nosso objeto de preocupação. Existe a ação de tirar, de um modo ou de outro, a própria vida, mas não o suicídio. Esta invenção, já vimos mais de uma vez, emergiu mais tarde. Se usei (e usei) a palavra "suicídio" para me referir aos acontecimentos anteriores, foi por comodidade apenas.
Neste vale, enfim, há uma floresta. Ficou conhecida como a "floresta dos suicidas". A floresta reservada aos violentos contra si mesmo, aos injustos.
Floresta "non fronda verde", mas "di color fosco". Traduzem por floresta de escuridão, em vez de folhagens verdes. As árvores desta floresta sombria, infernal, são os próprios injustos. Nelas, repousam ninhos de "le brutte Arpie". As Arpie, da mitologia grega, são aves de rapina ("Ali hanno late, e colli e visi umani, 13. 14 piè con artigli, e pennuto 'l gran ventre; 13. 15 fanno lamenti in su li alberi strani.") com asas largas, garras nos pés, rosto de mulher e seios (como toda ave de rapina?), que devoram as folhas das árvores.
Nesta floresta, ouvia-se "grita alfitiva" por toda parte, sem que se pudesse saber quem gritasse ("Io sentia d'ogne parte trarre guai, 13. 23 e non vedea persona che 'l facesse; 13. 24 per ch'io tutto smarrito m'arrestai."), até o Poeta saber que as árvores eram os próprios condenados.
Adiante, explica-se: "Quando si parte l'anima feroce 13. 95 dal corpo ond'ella stessa s'è disvelta, 13. 96 Minòs la manda a la settima foce." Em português, traduziu-se: "Quando os laços de uma alma ímpia/ Destrói por si, do seu furor no enleio/ Ao círc'lo sete Minos logo a envia".
Pedro des Vignes, secretário de Frederico II, agora transformado em lenho, enforcou-se por ter sido acusado injustamente de trair seu rei, conta as razões de lá estar ao poeta. E agora? Uma morte mais próxima das mortes do Primeiro Testamento ou da de Judas? Afinal, é uma morte de alguém digno, mas acusado injustamente, talvez, tal como Judas. Mas a mim me parece que esta morte de Pedro des Vignes está mais para as do Primeiro Testamento, pois, mais uma vez digo, não me interessa pensar a Bíblia hermeneuticamente, tentando recuperar o que, de fato, Judas fez, mas apenas tentar acompanhar os movimentos que a história oficial (e, nela, Judas é ou foi, por muito tempo, vilão), por mais ou menos enganosa que esta história possa ser, disparou. No limite, não me interessa, aqui, a Bíblia, mas somente o que se tornou possível falar e fazer a respeito do que veio a se chamar suicídio depois dela e que, antes dela, não era possível.
Bem, Dante Alighieri, neste poema absolutamente extraordinário e lindo, sem sombra de dúvida, e de grande repercussão, durante os séculos, parece-me dar um passo adiante à narrativa de Judas. Aqui, os violentos contra si mesmos, os "non giusto" (injusto pode ser, segundo o que estudei e o que penso, na Bíblia, aquele que, de algum modo, não age conforme à vontade de Deus) ganham um lugar: o inferno. Mais especificamente, o sétimo ciclo e o segundo vale. Nada muito agradável nem muito encorajador. Além disto, numa floresta obscura, sombria, espinhosa, com ramos nodosos e puas envenenadas. Enfim, não é o lugar no qual eu gostaria de atravessar a eternidade (aliás, detalhe não sem efeitos relevantíssimos, aqui, há a idéia de eternidade). E é um lugar reservado mesmo aos secretários fiéis e leais, se, porventura, traírem a vontade divina.
E toca terror nos que querem se matar.