quinta-feira, 4 de março de 2010

Se tudo isto estiver ficando insuportavelmente enfadonho, por favor, digam. Seja como for, hoje me parece um momento de especial catapulta, pois alcançaremos, por fim, o segundo testamento bíblico e, portanto, a narrativa de Cristo. Ainda há outros suicídios no primeiro testamento, mas passarei por eles, por inabilidade minha em deles extrair qualquer coisa muito mais rica do que já pude observar nos casos antes analisados.

No segundo testamento, pelo que me consta, há apenas um suicídio. O que, por si só, pode espantar frente aos sete, oito do primeiro, e constituir matéria de análise. O suicídio é de Judas Iscariotes. Personagem famoso. Nem sempre muito querido. Vide sua malhação nos sábados de aleluia.

Assim, é narrado – apenas no Evangelho de Mateus – seu suicídio:



“Quando Judas, que o traíra (a Cristo, obviamente), viu que o haviam condenado, ficou com remorsos, foi devolver as trinta moedas de prata aos sumos sacerdotes e anciãos, e disse: “Pequei, traindo sangue inocente”. Eles lhe disseram: “O que importa isso? O problema é teu!” Ele atirou as moedas de prata no Santuário, saiu e foi enforcar-se.” (capítulo 27, versículos 3-5)


Surpreendo, nesta narrativa, uma inversão radical, termo a termo, em relação às outras. Ou, mais justo, sou surpreendido, inequivocamente, por esta narrativa, após ler as anteriores.

Como vimos e, quem sabe, conviemos, os suicídios de Sanção, Saul e Abimeleque, em primeiro lugar, eram decididos em um momento em que a morte era certa, inevitável. A morte de Judas, por sua vez, nada tinha de improtelável.

Em segundo lugar, os primeiros figuravam, sempre, personagens principais, extraordinários: eram juízes, reis, salvadores de Israel do poder dos filisteus. Judas é, seguramente, coadjuvante, apesar de imprescindível, na narrativa cristã; afinal, quem salva, ali, é Cristo.

Em terceiro lugar, o suicídio dos primeiros foi deliberadamente por eles escolhido, para que sua morte resultasse digna e memorável, tão digna e memorável quanto já o fora suas vidas. O suicídio de Judas, ao contrário, é escolhido porque sua vida resultou indigna. Não desconheço o fato de que muitos exegetas vêm aplacar o lugar de vilão de Judas na narrativa, elucidando que ele foi o escolhido por Deus para dar consecução a Seus desígnios etc. etc., mas prefiro, novamente, ater-me aos predicados bíblicos: pecador e com remorsos.

Este momento me parece uma virada histórica de grande relevância para uma “genealogia” (de brincadeira, no máximo) do suicídio: do suicídio como solução para uma morte digna para o suicídio como resolução de uma vida indigna.

Posso estar redondamente enganado. Corrijam-me, por favor.

Até semana que vem.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Diminutivo-Aumentativo

agradecimento especial: BBR

Tenho cada vez mais certeza de que o mundo da publicidade é uma nação estrangeira. Uns tratam-na com total indiferença, como se ela pretencesse ao conjunto dos elementos supérfluos e ruidosos (deturpando um pouco sua acepção da teoria da informação) do mundo que, se não fazem parte essencial da vida cotidiana, então merecem ser ignorados. Para outros, a publicidade se afigura como um estorvo, uma perturbação a ser evitada com um toque no controle remoto ou um virar de páginas da revista. Outros ainda se deixam fascinar pelo seu universo de roteiros engraçadinhos, de imagens coloridas e das promessas espetaculares encarnadas nos produtos. E ainda há aqueles que consomem a publicidade em si mesma como se ela se desse a oferecer ao invés de visarem os objetos anunciados (lembrando o raciocnínio auspicioso de Jean Baudrillard).




Este último caso me parece particularmente interessante por criar um efeito de certa forma ambíguo. Ao assumir o primeiro plano, a publicidade acaba desviando a atenção do objeto a ser divulgado propriamente, de modo que o consumidor não pode mais se lembrar de que marca ou produto se trata. Ao mesmo tempo, o poder de englobar o público no universo criado pelos anúncios que compõe uma campanha interfere diretamente nos hábitos do consumidor e passa a fazer parte de uma espécie de "background cultural" popular de tal forma que, por vezes, sequer notamos que determinadas expressões ou lugares-comuns nasceram de campanhas publicitárias. Este seria o caso por exemplo da incorporação ao cotidiano de marcas ao vocabulário (gilete, xerox), de expressões idiomáticas ("não é nenhuma brastemp", "imagem não é nada, sede é tudo", "você precisa rever seus conceitos"), de silogismos filosóficos ("é mais gostosa porque é mais fresquinha ou é fresquinha porque é mais gostosa?"), de alegorias (o leão do imposto de renda) ou então de personagens (Super 15, tio da Sukita, Gordinhos do DDD, São Longuinho etc). Com relação a esta função da publicidade de se infiltrar na vida cotidiana, a Schincariol parece ter uma certa preferência por esta estratégia,  como podemos ver pela nova campanha do Cervejão (Caso você não se lembre, foi a mesma Schin que tentou emplacar com a repetição incansável do bordão "Experimenta!").



Só para reativar a nossa memória publiciária, a campanha utiliza exatamente a mesma ideia básica do aumentativo usada, há alguns anos atrás, por uma campanha do jornal do Estadão, que trazia como slogan "o jornal que pensa 'ão'" (Percebam que pode-se vender jornais e cervejas com o mesmo argumento...).  Não vou discutir questões de originalidade, criatividade e plágio, pois esses conceitos funcionam na realidade de maneira bem diversa do que o imaginário coletivo costuma conceber sobre o "mundo da publicidade". O que me interessa de fato é o recurso argumentativo usado como carro-chefe da campanha e, principalmente, por que ele tem certos pontos fracos comprometedores.





Enquanto ação de marketing, não se pode dizer que não vai dar certo. Se o plano de mídia surtir efeito conforme planejado no papel, em breve milhões de pessoas estarão em mesas de bares repetindo o 'ão' viciadamente e isso pode ser considerado como uma evidência de sucesso da campanha. Mas, é evidente que essa tentativa de inculcar novos hábitos (inclusive linguísticos) pode fracassar se o consumidor for um só pouquinho astuto e atentar para os pontos que comentarei agora.



Ninguém precisa ser um especialista em gramática para perceber que a campanha aposta no aumentativo "ão" e seu uso como valorizador afetivo. Um carro bom se torna um "carrão", muito dinheiro se torna "dinheirão" e uma mulher estonteante se torna um "mulherão" (é interessante que certas palavras femininas se tornam masculinas quando passam para o aumentativo). Até aqui, não há nenhuma inovação espetacular por parte da agência, já que qualquer pessoa com grau zero de escolaridade conhece esse uso (ainda que não conscientemente). O primeiro truque capcioso é o fato de que as falas elaboradas para os vídeos comerciais frequentemente usam palavras terminadas em 'ão' que não são aumentativos e, portanto, não tem a valoração positiva dada por ele, por exemplo "azaração" e "exceção". A estratégia foi transferida também com habilidade para o aviso regulamentar obrigatório "aprecie com moderação".




Alguém poderia dizer que a questão de aumentativo é só um detalhe gramatical supérfluo que não interfere em nada na eficiência da campanha. Afinal, os consumidores não vão ficar em frente da tevê anotando as palavras para depois conferir se são de fato aumentativos ou não. É justamente essa analogia sutil que dá sustenta a criatividade da campanha. Um "jogão" é um jogo emocionante e um "corpão" é um corpo tentador, mas em "azaração", não temos outra escolha já que nunca poderemos dizer algo como "azaracinha" ou, ainda pior, "azaraça". A mesma coisa acontece com "exceção": nenhum falante nativo de português acharia normal dizer "excecinha". Sendo assim, qualquer palavra terminada em 'ão' (curiosamente, o português é uma das pouquíssimas línguas no mundo que pode recorrer a essa combinação de sons!) pode remeter ao bordão principal da campanha e trazer à memória os atributos da cerveja, independente de ser um aumentativo ou não. E, neste caso, acho que poderíamos sugerir a inclusão de outras palavras como "destruiçããão", "poluiçããão", "corrupçããão", "facçããão", "infecçããão", "eleiçããão" e, por que não?, a própria palavra "nããão". Evidentemente, a criação da agência teve a cautela de evitar palavras que pudessem ter associações com conteúdos polêmicos ou desconexos com os atributos da cerveja a serem destacados.

Ainda relacionado ao primeiro, o segundo truque - este mais problemático - está na depreciação proposital do diminutivo em detrimento da valorização do aumentativo. Esta parece ser uma manobra relativamente simples, eficiente e por isso muito empregada: de um lado, determinados atributos recebem uma valorização postiva; de outro, os aspectos negativos são demonizados e combatidos graças à intervenção salvadora do produto ou serviço anunciado. Qualquer espectador percebe isso facilmente em propagandas de inseticida, de banco, de provedores de internet e de remédios para cólica intestinal. Porém, ao tentar usar essa mesma técnica com o par aumentativo/diminutivo, a agência ignorou certos fatos do uso da linguagem e correu um risco que, embora não prejudique expressivamente as vendas, pode levar mais uma campanha da Nova Schin ao fracasso.


Supondo que o uso afetivo de diminutivos e aumentativos fosse também tão comum em outras culturas e idiomas quanto o é no Brasil, o tal risco de que falo não seria tão decisivo. Se o inglês contasse com tal estrutura morfológica, a campanha seria um sucesso estrondoso nos Estados Unidos, onde o "Super Size", o "Big Mac", o "Triple Whooper" e as atrizes pornô de seios planetários evidencia uma tendência da cultura norte-americana de associar o tamanho à qualidade. Porém, a peculiar cultura brasileira apresenta certas brechas que invertem essa lógica como no futebol, para retomar o Veneno Remédio de J.M. Wisnik. Ronaldo Fenômeno, logo em seu começo de carreira, tinha o nome de Ronaldinho. Depois de certos fatos que lhe mancharam a popularidade e da ascenção de Ronaldinho Gaúcho, ele perdeu seu diminutivo carinhoso e virou apenas "Ronaldo". Mesmo assim, o Ronaldão ainda ficou reservado ao antigo goleiro do Corinthians que claramente nunca atingiu e nunca atingirá o estrelato de seus correlatos diminutivos. 
Ninguém pode duvidar do talento de Robinho, mas até hoje nunca conheci um jogador que tivesse a coragem de depreciar o seu diminutivo se apresentando como Robão. A lista poderia se estender infinitamente, mas só esses exemplos já comprovam que, no Brasil, jogador bom é jogador no diminutivo. Mas, como o Brasil não é só futebol, existem também muitos outros casos em que o aumentativo não é lá tão positivo, como deixa escapar a própria campanha da Nova Schin.  



Tabelinha ou tabelão?


Em rodinhas masculinas, quando o assunto é mulher, o aumentativo aparece como elogio e pode assumir diferentes formas: morenassa, peituda, mulherão e por aí vai. Justamente onde era o acerto era mais fácil, os roteiristas da agência deram um escorregããão: um biquininho me parece muito mais tentador do que um biquinããão (a não ser que estejamos na década de 40, é claro). E já que o assunto é este, ver uma mulher de calcinha é bem mais interessante do que uma mulher de calçããão.


Numa roda de amigos sentada em uma mesinha (nunca em um mesããão) de bar, pode cair muito bem pedir uma caipirinha, mas imagino que um caipirããão não seja tão bem-vindo. E, neste mesmo bar, um chorinho brasileiro pode deixar a noite mais agradável, mas um chorããão só pode ser um vocalista de banda de rock decadente ou então uma pessoa que só reclama. Pra acompanhar uma feijoada, nada como uma farofinha, mas um farofããão já não parece mais tão convidativo. E, na hora de ver o futebol, pode ter até paradinha na hora do pênalti. Mas, como o goleiro Rogério Ceni deixa perceber, um paradããão soa como algo um tanto esquisito. Em inúmeros casos, a relação se inverte: não só o diminutivo ganha uma conotação carinhosa e supreendentemente intensificadora, quanto o aumentativo passa a ser pejorativo. Para ofender alguém, deve-se chamá-lo de c*zããão, o diminutivo soaria ou como um chiste ou como um despropósito. Se o aumentativo fosse sempre positivo, o Domingããão do Faustããão seria o programa de televisão mais elogiado, o que claramente não procede.

A estratégia da campanha é bem habilidosa mas, para surtir o efeito pretendido, precisa atropelar certas sutiliezas do uso pragmático da língua. Apesar de parecerem oposições inconciliáveis, aumentativo e diminutivo podem ter efeitos de sentido bem diversos a depender do contexto em que são empregados, Especialmente no Brasil, o diminutivo conquista um espaço grande e intensifica supreendentemente os aspectos afetivos positivos. Talvez isso não prejudique de fato o desempenho da campanha, mas a Nova Schin pode, mais uma vez, jogar milhões pela janela com uma campanha mal-planejada e vai acabar virando o cervejããão do tiozããão.