segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Orgulho e preconceito

Quando eu era um corvo filhote ainda, admirava o hábito dos adultos de ler jornal. Para mim, ler jornal era algo tipicamente adulto. Criança brinca, adulto lê jornal. Um jornal nunca poderia ser um objeto infantil: um pedaço de papel cinzento e áspero, em formato inexplicávelmente grande que tampa toda a cara da pessoa quando aberto. Também não tem figuras coloridas (não, pelo menos, como nos "livros infantis") e divertidas, por vez ou outra uma foto de alguém importante que eu não sabia quem era ou então um gráfico cheio de numerozinhos. Então eu, no meu imaginário de corvo de poucas penas e muita ingenuidade, pensava: "escrever no jornal deve ser uma coisa muito séria".


Hoje, a mesma pergunta volta à minha mente, mas com uma penugem um pouco diferente: "o que é preciso para ser jornalista?". Se eu for tirar minhas próprias conclusões a partir do que vejo no produto dos jornalistas - obviamente, os jornais -  provavelmente vou chegar a uma única resposta: nada. Queria ressaltar que minha pergunta não chega ao ponto de indagar sobre os dotes de um bom jornalista. Apenas me pergunto sobre os requisitos mínimos para se tornar um jornalista, um ser humano cuja voz soa mais alto e mais notável na esfera pública do que a voz de outros seres humanos. Tudo bem, só com essa breve observação já descobri que - por sorte ou azar - nunca poderei ser um jornalista: sou um corvo, e não um ser humano e, portanto, não tenho voz. Mas, deixando esse fato de lado, acho que não preciso de mais nada. Não preciso de conhecimentos técnicos, não preciso de formação humanística, não preciso de capacidade de argumentação e análise e nem mesmo de um estilo bem elaborado. Pelo menos, é isso que posso concluir depois de ler o texto "O caso Maitê Proença", escrita por um colunista da Folha Online que atende pelo nome de João Pereira Coutinho. 

Resumindo em poucas palavras, o texto nada mais é do que um comentário sobre o episódio em que Maitê Proença faz piadinhas de mau-gosto discriminando os portugueses em uma matéria feita para o seu programa no canal GNT. Os portugueses travaram conhecimento do fato, se sentiram ofendidos e Maitê foi obrigada a se retratar em seu programa. Até aqui, nada de surpreendente: a atriz cometeu gafes preconceituosas que poderiam ser facilmente evitadas (pelo seu próprio bom-senso ou pelo bom senso do diretor do programa) e teve de pedir desculpas formais por isso. O que realmente surpreende é o fato de a coluna tentar defender as discriminações lúdicas de Maitê usando para isso argumentos bem pouco razoáveis. E, como eu sempre gosto de fazer, vamos direto ao ponto da discórdia: o texto. 


Nos primeiros parágrafos, o colunista introduz o tema com um trecho narrativa que dá ao leitor a impressão de estar lendo um conto ou uma crônica em tom que soa bem coloquial e despojado. Apesar do nariz de cera bem molinho e suave, o leitor atento não se deixará ludibriar pelo tom pejorativo das metáforas e comparações usadas pelo redator. Qualquer leitor que tiver estudado direitinho o conteúdo programático de redação para o vestibular, vai perceber também que, não por acaso, estas mesmas metáforas e comparações são acompanhados de hipérboles pouco inocentes. Seria uma prova de muita ingenuidade acreditar que estas construções - frequentemente mutiladas nos exercícios escolares - ocorram juntas por uma mera coincidência. Como um sorriso de canto de boca que desqualifica aquilo que se diz, o exagero proposital das expressões "...como se a Alemanha nazista tivesse invadido a Polônia novamente", "como se  o Palácio do Planalto tivesse bombardeado o mosteiro dos Jerónimos" e "como no antigo Faroeste" mal escondem a intenção de desqualificar o ponto-de-vista dos portugueses. 

Mas que ninguém diga que João Pereira Coutinho está tentando enganar os leitores, pois ele próprio assume abertamente que exagera em tais comparações na frase que encerra o quinto parágrafo: "Invento, claro, mas vocês percebem a idéia". O que deveria ser, em princípio, um motivo de descrédito acaba funcionando como uma estratégia para reforçar o laço fiduciário (já criado na introdução narrativizada, a propósito) entre redator e leitor. Não sei se minhas concepções sobre jornalismo e comunicação estão tão equivocadas assim, mas não creio que os internautas fiem sua confiança nos jornalistas para ouví-los falar "inventei", carimbado e assinado com um cínico "claro" que não deixa ao leitor outra opção a não ser concordar com a piscadela verbal do redator ou afrontá-lo abertamente. É certo que este gênero permite mais flexibilidade do que notícias sobre mercado financeiro ou política. Ainda assim, não pude deixar de sentir uma certa desconfiança ao ler um texto feito por alguém que assume "inventar". Se este ou aquele trecho está inventado, conforme o próprio redator declara, o que impede que todo o resto também não o seja? E, neste caso, o que me levaria a crer em algo que, potencialmente, é inventado? Talvez a distância entre jornalismo e ficção não seja lá tão grande quando se pensa. Talvez.

Na segunda parte de seu texto, João Pereira Coutinho terminar de desfiar sua lista de preconceitos pátrios. Partindo de sua própria premissa colocada no sexto parágrafo, segundo a qual "nas piadas existe um fundo de ternura", o colunista tenta usar um malabarismo retórico bem inusitado para tentar validar as "piadas de português". Com um pedido de perdão a Deus entrecortado, o redator afirma abertamente no sétimo parágrafo  que as piadas de português transportam um fundo de verdade. Nem mesmo a sua religiosidade entre vírgulas consegue disfarçar sua tentativa de atribuir a uma "realidade" os fatos risíveis das piadas que, de fato, só refletem preconceitos e estereótipos. E estes, com toda certeza, não se originam de outro lugar senão das culturas. Se as piadas de português tivessem mesmo o fundo de verdade, como afirma o redator, então teríamos de ver piadas de português em todos os lugares do mundo, o que evidentemente não pode ser levado a sério. 

Para coroar este pensamento algo “ontologizante” de que as piadas de português são mesmo “a realidade”, o colunista chega a abrir mão de qualquer espécie de argumentação lógica e afirma que basta olhar e caminhar por Lisboa para atestar a veracidade das tais piadas. Mais uma vez, o laço fiduciário entre redator e leitor enforca este último ao declarar uma suposta obviedade, como se bastasse um ser humano poder caminhar e olhar para dar razão ao ponto-de-vista do colunista. Do outro lado da moeda, o rompimento com a perspectiva oferecida age também como uma ameaça implícita de depreciação: se algum leitor discordar dos preconceitos fantasiados de fatos, então a ele será imediatamente relegada a inferioridade daqueles que não são capazes de ver coisas “tão óbvias”. 

E, para aqueles que ainda não se convenceram da violência autorizada do texto de João Pereira Coutinho, o final do nono parágrafo pode tirar qualquer dúvida que por ventura ainda possa haver. Aparentemente sem vergonha daquilo que diz, o colunista coloca em letras nítidas sua agressão etnocêntrica ao inocentar as piadas sobre portugueses – afinal, “ainda têm piada” - e demonizar as piadas dos portugueses apelidando-as de “xenofobia”. Dito em outras palavras, fazer piada com “eles” é absolutamente válido, mas fazer piada com “nós” se torna um crime imperdoável. Visto desse modo, me parece uma linha de raciocínio bem similar àquelas usadas nas atividades recreativas escolares: empurrão no jogador do meu time é falta; no jogador do time adversário, é jogo de corpo. Sinceramente, não alimento a falsa esperança de que esse tipo de raciocínio desapareça da face da Terra. pelo contrário, ele é a base do processo de formação de identidade de qualquer agrupamento humano. Portanto, só poderá deixar de existir no dia em que os seres humanos deixarem de formar agrupamentos coletivos ou deixarem de existir. Eu, como um Corvo Crítico, considero particularmente mais provável e desejável a segunda opção do que a primeira. 

Ao contrário dos animais silvestres, da flora marinha e dos corvos-críticos, o preconceito e a discriminação nunca entrarão em extinção e talvez eu seja um pouco pessimista em dizer que é vão lutar contra. No entanto, se não podemos erradicar esse parasita invisível que se multiplica utilizando como vetor as mentes humanas, temos pelo menos o dever de evitar que ele se utilize de jornais e revistas como hábitat natural. Afinal, um jornalista que tem o poder de publicar em um meio de massa de tão vasto alcance e, ainda além, recebe dinheiro para isso não tem o direito de pulverizar um tal preconceito irracional e, portanto, não merece outro nome senão o de parasita. Imagino que algum jornalista possa se sentir ofendido, tomar as dores de João Pereira Coutinho e tentar depredar também minha credibilidade, criticando a qualidade do meu texto e denunciando minhas comparações exageradas, meu tom excessivamente coloquial e meu preconceito contra jornalistas. A propósito, a única coisa que fiz foi copiar exatamente as características daquilo que me é dado a ler pelo jornalismo.



João Pereira Coutinho: que sua praga não se espalhe, senão iremos detetizar você e os preconceitos infectados em sua coluna.

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