segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Como escrever um texto sem ter assunto

É Carnaval, e nessa época parece que vivemos uma espécie de suspensão no tempo: as atividades políticas param, os desesperos financeiros desaparecem e até mesmo a rodada dos campeonatos estaduais parecem perder a importância. E já que é Carnaval, absolutamente tudo está neste estado de transe, todas as equipes de jornalistas foram escaladas para cobrir os desfiles e blocos de rua, decidi escrever algo mais suave (com uma certa desconfiança de que ninguém, no Carnaval, fica em frente ao computador lendo blogs), pois estou meio sem assunto. E, um pouco entediado de caçar, sem sucesso, alguma presa interessante nos noticiários, o meu assunto é exatamente este: a falta de assunto. 

Eu não sei se poderia usar a palavra "reportagem" de maneira adequada para este caso. E não se trata, muito menos, de uma coluna ou de uma notícia. Como quer que seja, o texto intitulado '"El País': Com Serra ou Dilma, 'Lula vencerá' eleições de 2010" é uma verdadeira aula de como garantir seu espaço semanal sem ter assunto. O próprio título já adianta qual foi é a técnica milagrosa para isso: as devidas aspas já advertem ao leitor qual foi a fonte das informações. Se ele clicar no título, irá ainda confirmar que a redação conseguiu rechear sua pauta editorial sem precisar pagar um tradutor (isso é, alguém que desempenhe essa função profissionalmente) e nem os direitos de reprodução da notícia. Só bastou um redator capaz de ler em espanhol - o que é, de fato, quase um pré-requisito para os profissionais que queiram sobreviver na área - e um teclado que contenha uma tecla para aspas - até onde eu saiba, é muito difícil mesmo encontrar um que não a tenha. 

É certo que o texto tem o mérito de assinalar devidamente as referências usando os recursos típicos de discurso reportado. Exceto a cautela de atribuir as afirmações ao jornalista do "El País", não se pode encontrar quase nenhum sinal da voz própria do redator, que se limita a costurar os trechos aspeados da coluna citada com mecanismos de discurso direto. Fazendo uma brincadeirinha de "bloquinhos coloridos", parecida com aquelas dirigidas para ciranças em fase de desenvolvimento, recortei todos os trechos em que o redator demarca a voz do Outro e transcrevi aqui em baixo:



Um artigo no diário espanhol "El País" avalia que

A análise, assinada pelo correspondente do jornal no Brasil, Juan Árias, discorre
diz o repórter. 
afirmando que 
Juan Árias aposta que 
diz o analista
Porém, diz o texto
descreve
avalia Árias
Mas o autor acredita que 
Na opinião do correspondente,

Na avaliação do correspondente do "El País"


Feito isto, colei abaixo o que restou do texto sem as expressões acima, que substitui por colchetes, e o que sobrou são simplesmente as declarações do tal Juan Árias. Observe:

[ ]  qualquer que seja o vencedor das eleições de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sairá, simbolicamente, vencedor no pleito. 
[ ] sobre os dois principais pré-candidatos na disputa - a petista Dilma Rousseff, candidata do Planalto, e o tucano José Serra, da oposição - [ ] ambos, se eleitos, "seguirão o caminho" de Lula. 
"A partir do próximo dia 1º de janeiro, o Brasil será um Brasil sem Lula. O que acontecerá? Nada", [ ] 
"Continuará sendo um país com instituições democráticas consolidadas, que não apenas conseguiu sair, sem se quebrar, da crise mundial, mas que está crescendo; um país sem possibilidades de golpe de nenhum tipo e que, apesar de alguns rompantes populistas em alguns momentos - sobretudo pela influência do chavismo - não se deixou arrastar pelo populismo da vez na América Latina." 
[ ] a disputa presidencial deste ano será disputada. De um lado está Dilma, "uma espécie de sombra" de Lula, [ ] . "Se ela vencer, as eleições seriam na verdade um terceiro mandato de Lula e garantiriam a continuidade de um certo lulismo." 
[ ], "Dilma não é Lula". "É quase um anti-Lula porque, mais que uma iluminada e uma improvisadora como ele, é uma gestora, que carece do carisma transbordante de seu chefe", [ ]
Já Serra "suporia a alternância normal, interrompendo de alguma forma a continuidade do PT no poder", [ ]
[ ] o tucano não é um "anti-Lula" e que, portanto, a escolha entre sua política e a política atual é "um falso dilema". "Com Serra, o Brasil seria um país sem Lula, mas ainda com Lula, no sentido de que o governador paulista não nega nenhuma das conquistas sociais de seu governo." 
[ ] , a campanha de Serra não seria "contra Lula", mas "depois de Lula". "Para Serra, seu governo não seria uma fotocópia do passado social-democrata, mas uma página nova." 
[ ], "sem Lula agora, e talvez com Lula amanhã de novo, o Brasil é um país que tomou o trem na direção certa, que o levará a consolidar o milagre de seu desenvolvimento". 

O resultado parece muito aqueles exercícios de livro de inglês do estilo "preencha a coluna" e tenho a impressão de que - excetuando certos pontos de incompatibilidade gramatical - as expressões poderiam ser comutadas livremente. Mais uma vez, nenhum sinal de uma voz própria do redator, a não ser, é claro, a decisão capciosa de selecionar quais trechos devem ser reproduzidos e quais devem ser omitidos. Em alguns casos, a aspas serve para assinalar a fonte das afirmativas. Em outros, carrega um certo tom de crítica. Em todo caso, é uma técnica simples de produzir um texto, principalmente quando seu ganho mensal depende de tal produtividade. É assim que se pode atingir o seu limíte mínimo de caracteres sem ter nada realmente interessante para escrever. Eu também não tinha nada, mas consegui completar a minha falta de assunto justamente com a falta de assunto alheia. Se me perguntarem como, minha resposta é simples: só fiz exatamente aquilo que os jornalistas também fazem.

Um comentário:

Pantera disse...

não tem muito a ver com o tópico, mas, enfim: caralho! os espanóis sabm MESMO quem é o serra? acho que até o mnn fala menos besteira sobre política