quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Com toda a vergonha deste mundo, peço desculpas muitas, pois não poderei ainda hoje empreender o esboço de análise prometido. Acabei, neste meio tempo, tendo de mudar de cidade – de São Paulo para a Praia Grande. Alguns dos meus papéis, que continham os elementos necessários para a análise, esqueci. Perdão.
Por isso, hoje publicarei um texto que viria bem mais tarde, cujo título é: INSTRUÇÕES PARA SE ESCREVER NO MAR

Dirão que mar é lazer, ignora. Impedir-te-ão, os guardas e inspetores, de sair da escola para ir ao mar, dize que teu trabalho é no mar. Não compreenderão, pena.
Assediar-te-ão, os coordenadores e diretores, com protetores solares e bronzeadores, recusa. Pois, quem escreve no mar, não se protege nem se bronzeia. Entrega a Apolo tua pele.
Oferecer-te-ão, os programas governamentais curriculares e apostilas, picolés baratos para aplacar o calor, repudia.
À beira da praia, inclina-te a fim de que teus dedos das mãos alcancem o sapato apertado e com chulé. Descalça teus pés. Goza a brisa que sapato e meia rechaçaram por tantos anos letivos e pontos assinados. Conduz, agora, as mãos à altura da cintura, afrouxa o cinto. Desabotoa as calças, não ruboriza. Do mesmo modo que não é de bom tom perambular pelas escolas apenas com as roupas de baixo, não é de bom tom adentrar no mar vestido. Não és moreno nem saudável, mas deixar-te-ão te desnudar, por ora. Se não deixarem, faze-o furiosamente, sem te preocupares. Despe, enfim, a camisa. Completamente nu, estás pronto para entrar no mar.
Atravessa a areia com calma. Queima-te na areia. Torna-te areia. Multipla-te incalculável, feito a areia. Queima quem te atravessar, teus alunos, feito a areia.
Impor-te-ão, teus colegas bem-intencionados, pesquisas comprovando que a água do mar é insalubre e que está poluída, dize que tua sede não tem fim, que nem bebendo o mar encherias o que tens de fundo.
Alertar-te-ão, os supervisores, do perigo das águas-vivas, dos tubarões, das baleias, das sereias, dize que não percam seu tempo tampouco sua voz.
Entra no mar. Primeiro virão águas vagarosas, em pequenas e suaves ondas. Frias. Apenas molharão teus pés. Prossiga. Refrigera teu corpo de areia. Desfacela teu corpo de areia. Aprenderás, finalmente, a lição do cuidado de si, como cuidado exclusivo do presente, pois que já não importará a onda que ficou para trás assim como não importará a que virá depois, importará apenas a que vem agora.
Algumas ondas, pularás. São as do primeiro tipo, as que não importam. Outras, afetar-te-ão de modo a não te permitir pulá-las: ou irás furá-las ou deixarás que elas te levem sem saber, de antemão, para onde. Não há regra. Algumas te parecerão melhor furar, outras, que te entregues. Saberás tomar a melhor decisão.
Enquanto as ondas arrebentarem em teu corpo, pulularão manchas brancas borbulhantes, são o esperma de Urano. Bebe. Chupa. Goza também.
As água-vivas, “formas de vida livre dos cnidários adultos”, brilharão, abraçarás todas. Aprenderás a urticância das formas de vida livres. Urticarás também.
Algumas conchas velhas e quebradas te cortarão os pés. Sorrirás, definitivamente pronto para a escrita. Porque não se escreve, no mar, com grafites ou tintas. No mar, escreve-se apenas com sangue.
Interrogarás com as algas, pontuarás com corais. Escreverás cardumes, tubarões famintos, cardumes, baleias insaciáveis, cardumes, piratas implacáveis, sempre grato à próxima onda que desfará, ainda uma vez, tudo o que escreveste.
Não quererás mais, como Moisés, dividir o mar em dois, tampouco, como Jesus, andar sobre ele. Para tanto, bastaria-te a ti a terra. Ela não basta! Mergulharás. Tornar-te-ás tomada para poraquês, presa para serpentes aquáticas. Cansarás logo da zona eufótica, gostarás da disfótica e te encantarás com a afótica. Abissal bioluminescarás, ainda que todo preto, às vezes, a fim de capturar tuas presas.
Por fim, ouvirás o canto da sereia. Salva-vidas ainda tentarão te readaptar. Ribombarás espuma e sal. Ainda tentarão te fazer ler Diários Oficiais. Dançarás ao ritmo de Calipso. Apitarão silvos cada vez mais estridentes. Os madrigais, uma doce melodia. Gritarão. Reunirás tuas últimas forças, tuas últimas palavras, teu último sorriso. Buscarão, de todas as maneiras, negociar. Negacearás, Yemanjarás. Comporão programas governamentais mais novos, roubando tua luta. - Lalaó, okê, yaloá.
Ouve Oguntê, Marabô, Caiala e Sobâ.
Recomendo.

Um comentário:

biel madeira disse...

eu gostaria de saber o que dizer... é incrível a sua capacidade de mesclar elementos de fundí-los, uma amálgama perfeita!

to impressionado!

bjo!