segunda-feira, 15 de março de 2010

Domingão, Jogão e Cartão

Bom dia, Krá krá

Antes que eu comece a crocitada de hoje, peço desculpas pelo atraso animal deste corvo que vai se esforçar o quanto pode para manter sua assiduidade por aqui. E, ainda antes da crocitada de hoje propriamente dita, gostaria de narrar uma pequena anedota pessoal. Exatamente hoje, 17 de Março, participei de um simpósio acadêmico e minha apresentação tratava de publicidade infantil e foi agendada em uma mesa com uma outra apresentação sobre publicidade e mundo corporativo. Como eu não estava metamorfoseado em minha forma de corvo, a abordagem ao tema foi consideravelmente sóbria, embora eu não tenha ficado satisfeito com meu próprio desempenho na apresentação. Como quer que seja, por contingências do trabalho que expus, tive de falar um pouco sobre as diversas linhas de abordagens à publicidade infantil e de repente me flagrei falando de temas sobre os quais nunca tinha refletido - ou não tinha consciência que eu já refleti alguma vez sobre eles. Depois da apresentação seguinte à minha - que colocou à mesa, a propósito, um rocambole teórico suspeito -  fiquei com a impressão de que muita coisa pode ser falada sobre a publicidade mas muito pouco pode ser realmente sensato. Nos limites de um fazer científico, é necessário perguntar "por que?" insistente e recursivamente e, neste ponto, uma parte infelizmente grande abandona a empreitada no meio com um resignado "isto é assim mesmo" ou então apela para pressupostos pouco razoáveis. De qualquer modo, quando se trata de olhar a publicidade como um objeto de estudo sério, é muito fácil cair em um falatório redundante e inconsistente que, não em raras vezes, poderia dispensar qualquer aporte teórico. E, quando não é possível recorrer a um destes, só nos resta uma solução: crocitar.

***

Há alguns dias atrás, comentei sobre a campanha do Cervejão lançada pela Nova Schin, que se vale de determinados truques linguísticos para tentar se infiltrar no cotidiano do consumidor. Resumidamente, os pseudo-aumentativos e uma valorização positiva algo caricaturesca de tudo que termina com "ão" são os lugares-comuns que sustentam o conceito da campanha. Já crocitei longamente sobre os pontos fracos desta estratégia mas decidi bicar um pouquinho mais a Nova Schin (e, porque não, agência de publicidade que possui sua conta) pois ela decidiu também nos presentear com mais um escorregããão sem noçããão na televisãão.


O novo filme da campanha vem para dar uma nova postura para a marca na medida em que inclui o público feminino como consumidor da cerveja. Persistindo no bordããão do aumentativo, a tentativa pode até parecer astuta, já que a mulher sempre ficou relegada ao papel de objeto de desejo nos anúncios de cerveja (em certos casos, um adjetivo ambíguo não permite saber se se trata da cerveja ou de uma mulher). Infelizmente, o calcanhar de Aquiles do novo roteiro é muito grande e qualquer rasteira de um espectador um pouco atento pode derrubar esse gigante de muitas cifras e pouco tato social. De um ponto de vista bem ingênuo, a abordagem pode soar bem aos ouvidos das mentes moderninha e ir ao encontro do ideário de independência e igualdade da mulher. Se homem bebe cerveja e não é recriminado por isso, por que é que a mulher deveria sê-lo? Pois, se os homens podem beber cerveja com os amigos no domingããão, que as mulheres também tenham essa direito. Essa linha de argumentação pode acabar virando arma para muitas discussões de relacionamento de casais por aí, apesar de esconder muito mal o estereótipo da mulher utilizado para funamentá-lo. 

No roteiro do novo vídeo, os termos aumentativos das falas masculinas são mais ou menos os mesmos dos vídeos anteriores e não poderiam ser menos representativos do estereótipo masculino: domingããão, cervejããão, jogããão (sem contar, é claro, o explícito machãão). Do lado feminino, marcado pelos cortes do áudio e do cenário, os aumentativos colocados na fala das mulheres marcam exatamente qual é o estereótipo de mulher que se senta à mesa para pedir uma Nova Schin: liquidaçããão, promoçããão, cartããão.

Cartãão aumentativo?

Agora, rascunhando a historinha do Marcããão e a sua esposa surrupiadora de cartããão,  o comercial não retrata nada além de um tiozããão que sai pra beber com os amigos e ver futebol e deixa sua esposa consumista sair para beber com suas próprias amigas, também todas elas deslumbradas com as maravilhas das compras. Não sei se estou sendo um corvo muito simplista ou muito ingênuo, mas não me parece que esse seja realmente o perfil comportamental de uma mulher que quer ter o mesmo valor dos homens. Considerando aquilo que o comercial nos dá a ver, as mulheres poderiam muito bem se equiparar em direitos aos homens se fizerem também o mesmo que eles: sair no domingããão pra beber o cervejããão. A mulher que achar divertido o comercial e rir junto com as atrizes certamente estará se alinhando a este ponto-de-vista e, levada pelos apelos do humor, talvez não se dê conta (talvez porque conscientemente concorde com isso) aquilo que lhe é proposto como identidade.

Ao final dos 30 segundos, a voz do locutor delata quem é, na verdade, o destinatário do comercial ao dizer: "domingão é dia de jogão, cuidado com o cartão". Ora, se a mulher realmente fosse abordada por este comercial, a advertência com o cartão não faria muito sentido já que, seguindo o próprio roteiro do filme publicitário, o cartão é motivo de satisfaçããão para a mulher e preocupaçããão para o homem. Se o comercial avisa o espectador para ter cuidado, então ele só incluir o público masculino. É provável que alguém ache minha linha de raciocínio algo óbvia ou mesmo exageradamente analítica. No entanto, esse tipo de engodo propagandístico (pois que ratifica certas concepções de masculinidade e feminilidade) é grasnado diariamente em nossos televisores e atinge milhões de espectadores. Por conta de comerciais com este, não faz sentido se perguntar em tom algo injuriado, como o fazem uns e outros, por que é que mesmo já no século XXI as mulheres ainda não ocupem o mesmo estatuto dos homens na sociedade. Para determinados segmentos sociais, é extremamente conveniente promover uma pseudo-emancipação feminina que esconde, na verdade, apenas uma perpretação dos mesmos valores em voga com o único objetivo de garantir lucros.

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