quarta-feira, 17 de março de 2010

Que Shakespeare me perdoe a apropriação paupérrima, mas há algo de podre, no reino da Dinamarca.
Bem, seja como for, e agora é ninguém menos que Dante Alighieri que haverá de me perdoar, visitemos nossa floresta, finalmente.
"Visitemos" talvez seja pretensão em demasia. Quem sabe, dar uma voltinha. Não bastassem as dificuldades muitas de atravessarmos tal floresta, ingrimíssima, o tempo não está a ajudar.
No sétimo círculo do Inferno, estão os violentos. O sétimo círculo é repartido em três vales. O primeiro é reservado aos violentos contra a natureza, as pessoas e seus bens. O segundo, aos violentos contra si mesmos, mais precisamente, no italiano arcaico do século XIV, aquele que "non è giusto". Portanto, ainda não se trata de suicídio nem de suicidas. Aliás, até agora, não existe nosso objeto de preocupação. Existe a ação de tirar, de um modo ou de outro, a própria vida, mas não o suicídio. Esta invenção, já vimos mais de uma vez, emergiu mais tarde. Se usei (e usei) a palavra "suicídio" para me referir aos acontecimentos anteriores, foi por comodidade apenas.
Neste vale, enfim, há uma floresta. Ficou conhecida como a "floresta dos suicidas". A floresta reservada aos violentos contra si mesmo, aos injustos.
Floresta "non fronda verde", mas "di color fosco". Traduzem por floresta de escuridão, em vez de folhagens verdes. As árvores desta floresta sombria, infernal, são os próprios injustos. Nelas, repousam ninhos de "le brutte Arpie". As Arpie, da mitologia grega, são aves de rapina ("Ali hanno late, e colli e visi umani, 13. 14 piè con artigli, e pennuto 'l gran ventre; 13. 15 fanno lamenti in su li alberi strani.") com asas largas, garras nos pés, rosto de mulher e seios (como toda ave de rapina?), que devoram as folhas das árvores.
Nesta floresta, ouvia-se "grita alfitiva" por toda parte, sem que se pudesse saber quem gritasse ("Io sentia d'ogne parte trarre guai, 13. 23 e non vedea persona che 'l facesse; 13. 24 per ch'io tutto smarrito m'arrestai."), até o Poeta saber que as árvores eram os próprios condenados.
Adiante, explica-se: "Quando si parte l'anima feroce 13. 95 dal corpo ond'ella stessa s'è disvelta, 13. 96 Minòs la manda a la settima foce." Em português, traduziu-se: "Quando os laços de uma alma ímpia/ Destrói por si, do seu furor no enleio/ Ao círc'lo sete Minos logo a envia".
Pedro des Vignes, secretário de Frederico II, agora transformado em lenho, enforcou-se por ter sido acusado injustamente de trair seu rei, conta as razões de lá estar ao poeta. E agora? Uma morte mais próxima das mortes do Primeiro Testamento ou da de Judas? Afinal, é uma morte de alguém digno, mas acusado injustamente, talvez, tal como Judas. Mas a mim me parece que esta morte de Pedro des Vignes está mais para as do Primeiro Testamento, pois, mais uma vez digo, não me interessa pensar a Bíblia hermeneuticamente, tentando recuperar o que, de fato, Judas fez, mas apenas tentar acompanhar os movimentos que a história oficial (e, nela, Judas é ou foi, por muito tempo, vilão), por mais ou menos enganosa que esta história possa ser, disparou. No limite, não me interessa, aqui, a Bíblia, mas somente o que se tornou possível falar e fazer a respeito do que veio a se chamar suicídio depois dela e que, antes dela, não era possível.
Bem, Dante Alighieri, neste poema absolutamente extraordinário e lindo, sem sombra de dúvida, e de grande repercussão, durante os séculos, parece-me dar um passo adiante à narrativa de Judas. Aqui, os violentos contra si mesmos, os "non giusto" (injusto pode ser, segundo o que estudei e o que penso, na Bíblia, aquele que, de algum modo, não age conforme à vontade de Deus) ganham um lugar: o inferno. Mais especificamente, o sétimo ciclo e o segundo vale. Nada muito agradável nem muito encorajador. Além disto, numa floresta obscura, sombria, espinhosa, com ramos nodosos e puas envenenadas. Enfim, não é o lugar no qual eu gostaria de atravessar a eternidade (aliás, detalhe não sem efeitos relevantíssimos, aqui, há a idéia de eternidade). E é um lugar reservado mesmo aos secretários fiéis e leais, se, porventura, traírem a vontade divina.
E toca terror nos que querem se matar.

Um comentário:

biel madeira disse...

e que terror isso toca...
a eternidade é algo sempre assustador.