segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O que se passa na cabeça dos leitores do Estadão? (ou"Polifonia e reponsividade")

Não muito antigamente, isto é, antes da popularização da Internet, os chamados grandes conglomerados de comunicação detinham todo o poder e voz na esfera pública. Tudo o que era publicado passava necessariamente pelo crivo ideológico dos editores e aos leitores era permitido somente comentar as notícias no balcão de um bar ou à mesa no café-da-manhã. No entanto, muita coisa mudou neste ponto e, cada vez mais, os leitores ganham o direito de manifestar suas próprias opiniões (embora esse direito continue ainda bem limitado pela moderação dos editores). 

É pensando nisso que às vezes eu me pego pensando em certos fatos curiosos - nada inéditos, mas cada vez mais visíveis no jornalismo on-line - como o número e o gênero de comentários dos leitores do blog de Marcos Guterman, do Estadão. O texto a que me refiro leva o seguinte título: "Bin Laden é mesmo um fanfarrão", publicado no dia 29 de Janeiro. 



Em primeiro lugar, gostaria de dar uma bicadinha no slogan (se é que se pode usar esse termo) do blog dele: "Política internacional, história e algumas coisas legais". Ok, nada demais, realmente não acha nada de ruim nisso (olha que o corvo consegue até ser um pássaro doce de vez em quando!). Se eu mesmo tivesse um blog, também gostaria de colocar como subtítulo "Política internacional, história e algumas coisas legais". Isso me deixaria com um ar de cara intelectual (afinal, não é todo mundo que consegue discutir política internacional) e ao mesmo tempo legal, afinal escrevo sobre "algumas coisas legais", mas não tantas a ponto de me fazer parecer um cara do Kibeloco ou do Charges.com. 

Até aqui, tudo bem. A diferença é que, para escrever sobre "algumas coisas legais", não precisa ser contratado pelo Grupo Estado, eu mesmo posso fazer isso. Ou então, podemos pensar ao contrário: se Marcos Guterman escreve sobre dois assuntos relacionados e mais "algumas coisas legais", então eu também posso trabalhar para o Grupo Estado. Nestes aspectos, esboçados aqui mais ou menos grosseiramente, estamos em pé de igualdade. A diferença é que Marcos Guterman ganha para isso e eu não. Até aqui, tudo bem. Alguém pode me dizer que Marcos Guterman tem uma formação sólida em história e direito e, por isso, ele conquistou respeitabilidade e o direito de ter sua opinião legitimada na esfera pública. Este parece ser um argumento razoável para corvo nenhum botar defeito. Mas então eu seria obrigado a bicar de volta e crocitar que, para escrever um texto como este, não é preciso ter formação em nada. No máximo, ter concluído o Ensino Médio e não ter sido reprovado pela professora de redação. Para ter produzido as exatas oito linhas do texto de Guterman sobre Bin Laden, não é preciso ter formação e muito menos receber algum dinheiro para isso. 

Tamanho não é documento. Muitos poemas não passam de oito versos e conseguem atingir um grau de maestria no fazer literário. No entanto, não parece ser este o caso. Já a começar pelo título, desta vez o "fanfarrão" foi o próprio Guterman, que se valeu de um jargão de Tropa de Elite (emprestado de outro contexto, não inocentemente) para depreciar Bin Laden - ou sua atitude que é o motivo da "notícia", como veremos. 

O Fanfarrão Guterman já começa seu texto com uma expressão um pouco infeliz, referindo-se à Al Qaeda como "organização genocida islâmica". É um belo exemplo de linguagem politicamente correta, ponto-de-vista travestido de imparcialidade. Eu poderia ficar horas crocitando sobre outras "organizações genocidas" católicas, agnósticas, comerciais, midiáticas, religiosas, publicitárias entre outras... mas sobre esse assunto crocitarei outro dia. Na segunda linha, ele coloca sob a  expressão "preocupado com o aquecimento global" um link para a matéria do Washington Post que motivou o seu próprio texto. Quem ler o primeiro  parágrafo inteiro de Guterman (ou seja, 75% do seu texto) vai ver que ele nada mais faz do que parafrasear e resumir a matéria do jornal americano. Ora esta, não sei se estou sendo um corvo muito ingênuo, mas me parece que surge daí um contrassenso do tamanho de um elefante. Se o texto original, isto é, aquele em que Guterman se baseou, já está linkado, não há motivo para ficar apenas com as palavras do jornalista brasileiro, é mais recomendável conferir a informação na própria fonte. Tudo bem, pode ser que o leitor não consiga ler em inglês: neste caso, ele é obrigado a acreditar nas referências de Guterman - mas, então, o link não se faz necessário. Estranho ...



Depois de ter percorrido 75% de seu texto, ou seja, 6 linhas (vale lembrar que as seis linhas de um navegador são bem menores que seis linhas de caderno), vemos novamente uma referência à fonte original da informação. Muito bem, neste ponto, Guterman parece ter obedecido às leis da ética profissional e respeito ao leitor ao mencionar suas fontes. Mas, depois de terminar a leitura dos 25% restantes, o leitor fica com uma leve impressão de que o texto não possui uma voz própria, já que apenas parafraseia a reportagem do Washington Post. Apesar de carecer de certas marcas textuais, eu arriscaria dizer que a última frase ("E o pior é que é bem capaz de dar certo") foi a única que não foi extraída de fontes alheias. Em outras palavras, a última frase deve ser o único ponto em que o articulista coloca seu próprio julgamento crítico - supostamente advindo de sua formação como historiador - justamente aquela formação que o distingue de mim e de você. 

Pois bem, o texto em si não me parece muito digno de ter saído de um jornalista do "tão renomado" Estadão.com. A partir daí, só posso tirar duas conclusões, entre as quais não posso decidir qual é de fato a correta: ou Marcos Guterman não possui a qualificação necessária para ter a poisção profissional que tem, ou não é preciso ter lá muita qualificação para ser um jornalista do Grupo Estado. O mistério permanece não-resolvido. 

Tudo bem, o texto não é lá nenhum espetáculo - nem no sentido positivo e nem no sentido negativo. Pensando assim, o texto não é nada além de medíocre e, por isso, nem merece atenção maior do que os respetivos comentários dos leitores. Se, por um lado, o texto é bem enxuto e não possui nada de extraoridnário, por outro lado, é impressionante ver o sem-número de leituras, as mais diversas possíveis entre si. 

Não diria que os comentários são sem-sentido e não procedem: isso seria ainda crer que o sentido está incrustrado dentro do texto e que nada pode ser lido nele além daquilo que está propriamente codificado ali em forma de linguagem. Muito além disso, é interessante ver a multiplicidade de leituras possíveis e a maneira como os leitores reagem a um texto relativamente simples. E é nesta hora que eu me pergunto: o que será que se passa na cabeça dos leitores do Estadão?



Com uma breve e superficial leitura dos comentários, pude identificar alguns tipos de comentários mais frequentes. Existem os comentários engraçadinhos, dentre os quais se pode ler coisas como "Bin Laden gosta de aquecimento somente em torres gêmeas", "Agora estamos salvos !!! kkkk", "Bin Laden 2010. ESSE É O NOSSO CANDIDATO" entre outros chistes do mesmo estilo. Existem também os comentários engraçados, mas que são os mais tristes jsutamente por não terem sido feitos com esta intenção. Geralmente eles apresentam conclusões absolutamente estapafúrdias ou concepções e conviccções políticas bem pouco razoáveis. Entre os vários exemplares, não pude deixar de contemplar a opinião do leitor Paulo Timbo: "AQUECIMENTO GLOBAL? COM TANTO GELO NO HEMISFÉRIO NORTE? ISSO É PIADA DE ONGUEIRO? AQUECIMENTO GLOBAL NÃO EXISTE MARCOS." Acho que não preciso me aprofundar na questão. O leitor chamado André também coloca uma preciosidade do pensamento político internacional, que copio aqui em baixo:

"Guterman,
Ótimo , aos mesmos moldes do Hugo Chávez !!!
Aliás, a minha dúvida é : se Hugo Chávez segue o Bin Laden ou se o Bin Laden segue o Hugo Chávez !!


sds"


O leitor Marcos Maia escreve (e transcrevo sem alterações): "BIM LADEN ESTÁ MORTO DESDE 2005. O vídeo denúncia é encontrado no YOUTUBE e tb no meu site. Não é bobagem, tem imagens e até depoimentos de autoridades." É interessante que o próprio leitor prevê as possíveis críticas e adianta a justificativa de que "não é bobagem". Por curioso que seja, ele não é o único a defender a ideia de que Osama bin Laden está morto e que, portanto, o video divulgado pelo Washnigton Post é uma farsa. Seguindo esta linha conspiracionista, outros leitores trazem novamente à tona a teoria de que o atentado de 11 de Setembro foi um plano arquitetado pelos próprios Estados Unidos.

Além disso, surgiram diversos comentários sobre o eterno conflito entre cruzados e sarracenos, cristãos e muçulmanos, árabes e "ocidentais", judeus e palestinos, incluíndo comentários repletos de preconceitos semitas, antissemitas, anti-árabes e anti-antissemitas. Mais de um leitor aponta como motivo da não-confiabilidade do texto o fato de Guterman ser judeu e querer difamar os muçulmanos. É certo que o texto superficial de Guterman deprecia abertamente Bin Laden, mas não arriscaria dizer que isso se deve somente ao fato do jornalista ter nascido de pais judeus. 

A partir daí, este comportamento antissemita passa a ser criticado por outros leitores que, por sua vez, são criticados por defender uma identidade judaica de modo excessivo - lançando mão, inclusive, de uma comparação interessante com outros imigrantes no Brasil. E, como a questão do judaísmo entre em cena, é inevitável que venha à tona também o nome de A. Hitler e o regime nazista, responsável pelo genocídio dos judeus na Europa. Para combater esse argumento, surgem também aqueles que acusam os outros genocídios velados, como os do estado de Israel, dos Estados Unidos e da própria colonização do Brasil. 

Todo esse emaranhado de argumentos e contra-argumentos que mutias vezes parecem não se referirem uns aos outros perfazem mais ou menos 90% dos 114 comentários (até o momento da publicação deste post) angariados por Guterman. Somente os 10% restantes representam opiniões sensatas em com alguma pertinência ao texto em si. Dentre esta minoria, me agradou especialmente aqueles leitores que perceberam a leviandade de Marcos Guterman com relação ao tema. Um leitor que se autodenomina "eu" escreve: "Voce é pago para escrever 10 linhas?". A leitora Paula também nota a rajada de estapfúrdios disparada pelos comentários e escreve, em um tom contundente: "De todos os blogs do estadão, acho que o seu é o que mais atrai maluco e gente com déficit de interpretação de texto. Impressionante como acham antissemitismo em tudo!". Outro leitor, que se identifica como John, também nota o que, aparentemente, passou despercebido aos outros:  "Como pode um historiador e jornalista escrever um texto tão pobre e fraco ? Lamentável !". 

Faço minha a voz crocitante desta minoria de leitores que, para a minha alegria, se manifesta e, para a minha tristeza, é a minoria. O texto fraco e superficial - diria até, meio preguiçoso - de Guterman é realmente um desperdício de espaço e tempo editorial. No entanto, não se deve simplesmente jogar a culpa nos editores, redatores e jornalistas pela baixa qualidade do material publicado. Na condição de leitores críticos, devemos arregalar os olhos e abrir o bico para este tipo de gato jornalístico vendido por lebre. Enquanto a maioria dos comentários se ocupava em debater acirradamente temas que, em princípio, sequer dependem da reportagem em questão, o real escândalo acabou passando despercebido: a superficialidade e a baixa qualidade da informação oferecida por um dos maiores títulos do país. 

Para terminar, só um último recado ao articulista em questão: Marcos Guterman, escreva algo condizente com seu salário e sua formação. Ou então, deixe o lugar para outros corvos críticos 

4 comentários:

B.B.R. disse...

"lançando mão, inclusive, de uma comparação interessante com outros imigrantes no Brasil."
OK, a comparação é interessada, mas totalmente infundada.
"Já ouviram algum descendente de Italianos nascido por aqui dizer que é Italiano? Ou Italiano Brasileiro. E Árabe Brasileiro? Ou Japonês Brasileiro?".
Ela cometeu um erro primário nesta última: vc como um legítimo corvo crítico japonês, ou deveria dizer nikkei, nunca foi chamado (ou alguém de sua família) de nissei, sansei ou até mesmo o mais raro yonsei?

Se o Guterman errou (como normalmente faz,só pra dizer), a guria também errou. E feio.
E faço também meu o seu título "O que se passa na cabeça dos leitores do estadão?

B.B.R. disse...

PS: e ela esqueceu totalmente que judaísmo tbm é religião (que coisa não!)

Corvo Crítico disse...

Sim, a comparação da guria é completamente infundada. Existem inúmeros casos onde a identidade cultural, por assim dizer, é declarada de acordo com a ascendência e não o local de nascimento. Isso sem considerar os casos de adjunção (p. ex. "Nikkei"). A comparação foge do insulto simples "Você é judeu". Mas não procede, de qualquer maneira.

Pantera disse...

o que mais me choca é a certeza das pessoas de que se pode riscar a giz uma linha entre o bem e o mal: um de um lado, o outro do outro. que as duas partes são incomunicáveis e que sempre estamos somos obrigados a escolher e entrar definitivamente em um dos dois lados sem a possibilidade de sair. as pessoas parecem que não compreendem que o ser humano é muito mais completo e que é sempre múltiplo, que não somos e nem podemos ser uma coisa só. independente da forma como foi exposto, o que me assusta é que o bin laden é pintado como eterno vilão e que agora quer "manchar o nome" dos movimentos ecológicos, ignorando que ele, além de "terrorista", é um líder político de seu povo (não cabe aqui decidir se bom ou mal, ele apenas o é) e para tanto tem que estar atento para possíveis problemas que possam afetá-lo.